lais

Eu detesto o formato de carta aberta, longe de mim vir aqui e rachar minas. Mas eu preciso pegar na mão da amiga Lais Souza e dizer: miga, vem cá, vamos conversar.

Acho que todo mundo sabe quem é Lais Souza e o que aconteceu com ela, ginasta, ficou tetraplégica daquelas de peso mesmo, mexe nem o dedo. Foi pra Miami, fez tratamento de ponta, ganhou cadeira massa, pensão especial com o valor do teto da previdência social, numa manobra muito louca feita sob os holofotes da mídia que até hoje não entendi, muito melhor do que a maioria das pessoas com deficiência desse país.

Mas eu não estou aqui para rechaçar sua regalias, mesmo porque, eu mesma nasci em berço de ouro e sei o quanto sou privilegiada por ter tudo que tive.

Meu post não vai tanto para Lais, muito embora eu tenha me incomodado muito com as declarações que ela tem dado, mais especificamente esta aqui:

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Basicamente Lais fala muito em voltar a andar, mas agora vai um pouco além, e já se refere a sua cadeira de rodas como porcaria.

(Calma, Mila, respira)

É nessa hora que a vontade que dá é de chegar lá e dar um tapa na testa como uma boa irmã mais velha faria e dizer “miga, se liga, essa cadeira aí é pra você e pra muitos de nós a coisa que vai possibilitar caminharmos por aí, não chama de porcaria”. Para mim, chamar cadeira de porcaria é como cuspir no prato do almoço especial de domingo, de barriga cheia. É uma ofensa. Mas está aí nessas e outras reportagens, como se fosse lindo, fosse prova de que Lais, guerreira, não está se dando por vencida, não quer essa vidinha que milhões de pessoas, tão jovens e cheias de vida quanto ela, vivem.

Veja bem, é a opinião dela, claro, alguns vão dizer. Não espero mesmo que uma menina atleta, recém lesionada, tenha a mesma visão que eu, “malacabada” desde sempre, tenho sobre cura, aceitação, visão de deficiência. Juro que eu entendo. E aí eu faço um esforço enorme para guardar minha indignação na caixinha por uns minutos e explicar.

Explicar que o pensamento capacitista (o que numa tradução do termo em inglês “ableism” significaria o pensamento de que pessoas com deficiência são inferiores) está tão incrustado na sociedade que as pessoas mal se chocam com o que Lais diz. Na verdade, elas batem palma. Laís, dentro dessa mesma sociedade, não está imune a perpetuar esse pensamento opressor que entende que enquanto ela não andar ela não está vivendo a vida, ela está em trânsito, que tudo que disser respeito a essa nova fase é uma porcaria.

E pior: dos mil tratamentos bacanas que Lais está recebendo, quem está preocupado em dar a ela o apoio psicológico para que ela passe essa fase da melhor maneira possível?  Sem dar declarações deploráveis como essa, que me desculpe, magoa quem está vivendo nessa porcaria de cadeira de rodas, que não vai andar, que na verdade pode inclusive ir perdendo os movimentos que já tem? Martelam que ela vai conseguir, enchem ela dessa certeza, quando deveriam apresentar a ela formas de se sentir melhor com essa fase.

Quando Lais se lesionou, naquele momento a vida dela mudou. Ela deixou de viver daquele lado onde as pessoas andam, sobem escadas, acessam qualquer lugar, qualquer página, sem se preocupar. E passou a ser uma de nós, pessoa com deficiência. Ainda que se ela se cure, ela experimentou esse lugar. Doloroso e nada glamuroso, convenhamos, mas que merece ser respeitado. Um lado de gente que luta, não só para sair andando, ouvindo, enxergando, mas luta por direitos para continuar vivendo, de forma digna e plena.

Quando vão passar a nos enxergar? Enxergar que essas coisas que nos são ditas todo o tempo só reforçam opressão, nos relegam ao lugar de coitadinho? Coisas que dizem “olha, a vida de vocês é tão miserável que só sendo uma guerreira para aguentar” e que “ainda bem que nossa atleta não desistiu de se curar, porque, nossa, impossível ser feliz assim”.

E há quem diga que não foi bem isso que ela disse e, de novo, não estou aqui para jogar pedra nela. Eu estou aqui para mostrar que as notícias que reverberam sobre deficiência são, sempre, essas, sempre os mesmos termos. Você não vê um personagem com deficiência numa novela, com um emprego e tendo problemas comuns como uma camisinha que furou, só tem personagem  que alimenta ainda mais todos esses estereótipos. Quer mais exemplos? Curso minha segunda graduação e só tive um professor com deficiência em toda minha vida escolar, 14% da população brasileira tem deficiência, quantas pessoas com deficiência você vê por aí? O que você vê é exclusão e reprodução desse grande circo onde só servimos para sermos objeto de frases feitas sobre superação em programas de tv que arrecadam dinheiro para nos fazer voltar a andar e nos livrar de “porcarias de cadeira”.

O que torna tudo muito mais difícil para quem, como ela, está se recuperando, colocando a vida nos eixos. Não precisamos de manchetes que nos leve, tão somente, a pesquisas para nos dar “a cura”. Precisamos de manchetes que mostrem ao mundo, com a nossa voz, como vivemos, andamos, enxergamos e nos comunicamos. Porque não tem como Lais, nem nenhuma outra pessoa, se enxergar deficiente enquanto o mundo estiver nos invisibilizando sistematicamente.

Source: Parem de pregar pela superação – Lugar de Mulher