Descrição da imagem: cenário em fundo vermelho de um ensaio sensual entre um homem e uma mulher sem deficiência.

Desde o início da adolescência, onde comecei a ter acesso às redes sociais, fui recomendada pela minha mãe a tomar certo cuidado com minha imagem. Não entendia o porquê, mas procurava aproveitar as ferramentas que a Internet oferecia para privar minhas fotos aos meus amigos. Com a chegada do Facebook, comecei a receber algumas solicitações de amizade de pessoas desconhecidas, evidentemente fakes. Volta e meia, os mesmos fakes curtiam e comentavam a maior quantidade de fotos que conseguiam da minha página, sempre elogiando. A troco de quê alguém faria isso? Pensava comigo mesma, até saber que aquelas pessoas eram Devotees.

De acordo com o dicionário, devoteísmo aponta aquele que tem devoção/admiração por algo. Sendo assim, devotee é aquele que se sente atraído sexualmente por determinadas deficiências físicas. Sendo patologia para alguns e fetiche para outros, está presente na história e nas artes. Como pode-se ver nos Ensaios de Montaigne:

“Dizem na Itália, num provérbio corrente, que não conhece Vênus em sua perfeita doçura quem não se deitou com uma mulher coxa. A fortuna ou algum fato particular puseram, a muito tempo, essas palavras na boca do povo; e isso se diz tanto dos machos quanto das fêmeas. Pois a rainha das amazonas respondeu ao cita que a convidava para o amor, “o coxo é quem faz isso melhor”. […] Pois só pela autoridade do uso antigo e corrente deste provérbio, acreditei outrora ter recebido mais prazer de uma mulher pelo fato de ser ela deformada, o que pus na conta de suas graças.” (Cf. Montaigne, Os Ensaios, Uma Seleção, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, liv. III, cap. XI, pp. 505,6)

O tempo e a presença das tecnologias trouxeram esse discurso à tona, sendo a Internet um espaço para discussões abertas sobre o devoteísmo. Homens e mulheres de todas as orientações sexuais têm se assumido Devotees e buscado na rede um ambiente de relacionamentos com deficientes físicos. Visitando um fórum que pode consultado aqui, encontrei o seguinte depoimento:

“Meu devoteísmo é do tipo heterossexual, atração especial por cotos e membros finos atrofiados de mulheres somente. Especialmente por amputação ou má formação de perna ou antebraço. Às vezes sinto atração por moças mancando. O meu tipo demanda mais um relacionamento romântico e inspiração através do esforço alheio.”

Por muitos militantes e comunidade apoiadora das causas de pessoas com deficiência, o devoteísmo é visto como uma atração comum, da mesma maneira que um indivíduo poderia possuir preferência sexual por pessoas loiras ou morenas, por exemplo. Ademais, é explorado um romantizado discurso onde o Devotee, na verdade, tem o desejo de cuidar e zelar pelo bem do deficiente físico. Tal como na hipótese de mulheres devotees terem seu instinto materno sanado ao relacionarem-se com homens deficientes e assim, tomarem conta dos mesmos.

Entretanto, o discurso e a prática não se conciliam, e isso pode ser visto no modo como essas pessoas atuam. Grande parte das vezes utilizando perfis falsos, Devotees apropriam-se do chamado “stalkear”, que segundo o dicionário informal, possui o seguinte significado: “a vigilância exacerbada que uma pessoa faz a outra, muitas vezes forçando contatos indesejados.” Muita das vezes, adicionam amigos e familiares da “vítima” em sua rede de amigos na intenção de faze-la aceitar o convite. Quem fala sobre isso é Lis Loureiro, mulher, cadeirante, participante do movimento feminista que por vezes teve de conviver com esse grupo.

“Quando chega um fake bonito, atraente e simpático, que sabe como entrar na mente de uma mulher, que “aceita” sua deficiência, a mulher vai querer ficar…” compartilha, lembrando de experiências pelas quais já passou. E nos confessa que muita das vezes, ao sentir interesse por uma pessoa com deficiência, os Devotees insistem no flerte e perseguem o indivíduo. “O cara te assedia de uma forma que não é legal, pois ele não está interessado em você, mas na sua deficiência… E as pessoas romantizam isso, o que acaba normalizando a situação”, Lis lembra-se de ocasiões em que questionou a atuação dessas pessoas e foi hostilizada por outros deficientes físicos.

Ao questionar sobre o porquê mulheres com deficiência naturalizariam esse acontecimento, Lis responde: “relacionamento é algo que a família da pessoa com deficiência não coloca em pauta, ele dificilmente tem uma vida sexual ativa […] Quando você é deficiente e flerta com alguém, a pessoa pode até se interessar por você, mas não fica pelo que vão pensar a respeito”. Dessa forma, devotees podem utilizar de situações que causam baixa autoestima no deficiente físico para atraí-los. O que seria no mínimo, injusto e inapropriado.

É preciso rever o devoteísmo. E rever por uma ótica que contemple pessoas com deficiência que já passaram por alguma experiência negativa. É preciso repensar se o método utilizado por eles para se aproximar dessas pessoas é correto, se usar perfis falsos para aproximar-se de seu alvo é bacana. Se perseguir virtualmente é apropriado. Essa discussão precisa ser aberta a pessoas com deficiência, a mulheres que são atingidas por uma relação de gênero, a quem nunca teve acesso a todos esses termos.

Ademais, é fundamental problematizar se colocar a condição de um indivíduo na frente de sua personalidade durante o flerte é digno.

Source: O devoteísmo e a romantização – Não Sou Exemplo