Imaginar nossos filhos deixados de lado é fantasia macabra provocada pela escassez de respiradores.
Paciente com respirador na UTI: por escassez de aparelhos, profissionais de saúde são obrigados a deixar idosos morrerem enquanto atendem os mais jovens Foto: Getty Images
Paciente com respirador na UTI: por escassez de aparelhos, profissionais de saúde são obrigados a deixar idosos morrerem enquanto atendem os mais jovens Foto: Getty Images
Dois de abril é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, data estabelecida pela ONU (Organização das Nações Unidas). Estima-se que 1% da população global – e brasileira – esteja no espectro do autismo. Meu filho faz parte desse grupo.
Segundo o último Censo realizado aqui no país, o de 2010, 45 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência. Dava 23,9% do total, sendo um terço com grau severo. Neste grupo meu filho também está.
Durante a pandemia do coronavírus, não vem sendo possível ler na imprensa, salvo exceções que confirmam a regra, reportagens sobre as agruras sofridas por deficientes e os que vivem próximos a eles. É compreensível. Somos minoria. Nem há mão de obra, nos veículos de comunicação, para dar conta de tantos assuntos em torno da Covid-19.
O perdoável silêncio nos torna ocultos. O medo de receber o vírus é algo que aflige qualquer ser humano hoje, até os que fingem não acreditar na peste. Para quem lida com deficientes severos, há uma aflição em dobro, digamos assim: por nós mesmos e por eles, que em muitos casos não têm consciência do que está acontecendo. Outro grupo do meu filho.
Nas últimas semanas, chegaram da Itália notícias terríveis: por escassez de respiradores diante dos milhares de casos, profissionais de saúde são obrigados a deixar idosos morrerem enquanto atendem os mais jovens, porque têm mais vida pela frente. Pessoas formadas para salvar vidas decidem quem morre. E podem ser eles mesmos, expostos à contaminação.
Será que haverá respiradores para as pessoas com deficiência ou eles ficarão com os “saudáveis”? Ainda não dá para saber, mas é certo que não haverá tratamento para todos os brasileiros que a Covid-19 atingir.
Na terça (31), duas reportagens reforçaram que é assustador o que teremos. Em depoimento a Felipe Grinberg, uma médica que trabalha num hospital do Rio de Janeiro expôs como são precárias as condições na rede municipal de saúde para enfrentar o afluxo de doentes. Não há equipamentos de proteção suficientes para os enfermeiros e médicos.
“Vamos morrer assim como os profissionais de saúde morreram na Itália”, afirmou ela. E professou o horror de repetir o papel de Deus/diabo exigido dos colegas italianos. “Ainda não chegamos ao momento em ter que escolher quem usa um respirador e quem não vai usar. Mas quem fará essa escolha? Eu? Não estamos aqui para decidir se uma pessoa irá morrer. Queremos salvar todos.”
Já em O Globo, o médico Roberto Medronho, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e que participa do grupo de trabalho que dá apoio técnico ao governo do Estado, alerta que grande parte dos mortos não terá o seu diagnóstico. Não há condições para isso, não há tempo. O filme a que ele teme assistir é de terror: “Por exemplo, ver muita gente sem respirador, sufocando até a morte. Doentes graves sem atendimento devido à explosão de casos, gente morrendo em casa”.
Na quinta (26), o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, foi mais uma vez infeliz ao se manifestar. Disse que pretendia já em abril pôr as escolas municipais para funcionar. Segundo ele, a reabertura começaria pelas turmas de alunos especiais. Depois viriam os “normais” – ele usou essa classificação preconceituosa. Será que crianças e adolescentes com deficiência serão bois de piranha? Se eles forem derrubados pelo vírus, os outros ficam em casa; se resistirem, os “normais” voltam.
Na prática, não deve haver motivo para excessiva preocupação. As escolas dificilmente reabrirão neste mês. E sempre há algum assessor para lembrar Crivella de que ele só diz bobagens – não inofensivas, infelizmente.
O que motivou a fala do prefeito foi o de sempre: dinheiro e poder. É como aquele poema de Carlos Drummond de Andrade, “Quadrilha” (sem jogo de palavras). Crivella ama o bispo Edir Macedo, que é seu tio; o dono da Igreja Universal do Reino de Deus ama Jair Bolsonaro, que dá dinheiro para a TV Record; Bolsonaro ama os filhos – e só a eles; e eles passaram a amar Crivella para ter abrigo no partido Republicanos, pelo qual concorrerão a algum foro privilegiado em outubro, se houver outubro.
Os dados oficiais alemães indicam que o programa nazista de eugenia matou 75 mil pessoas com deficiência. Mas estima-se que o número real chegue a 200 mil.
Não há qualquer relação entre o nazismo e o que vivemos hoje. Os dados foram apenas para assinalar que a história não favorece o nosso lado.
Estamos confinados com pessoas que amamos e a quem é muito difícil, ou mesmo impossível, explicar por que não podem ir às ruas. Ou vamos às ruas, com parcimônia, porque eles não suportam o confinamento. Se, por isso, transmitirmos os vírus para outros com os quais cruzemos em nossa curta jornada ao ar livre, seremos culpados, os deficientes e seus responsáveis? Aliás, o torturante sentimento de culpa perpassará a humanidade durante e depois da pandemia?
As expressões de desorientação nos rostos de filhos como o meu espelham o que também não sabemos sobre o que está vindo.