Desenho universal é a palavra-chave para alcançar a acessibilidade. Esse modo de projetar virou lei e está ajudando a criar espaços e produtos usáveis por todos

Por Silvana Maria Rosso

fotos Sandra Perito

Banheiros para cadeirantes ou pessoas com mobilidade reduzida, rampas, plataformas, elevadores acessíveis, pisos táteis, sinalização inclusiva, barras de apoio… Quem escuta falar desse aparato disponível no mercado em prol da acessibilidade não se espanta. Mas não é tão longínquo o tempo em que a arquitetura e o design baseavam-se no homem padrão ou dito “normal”, excluindo as pessoas com algum tipo de limitação ou deficiência e lhes negando o direito de ir e vir, de estudar e ter uma vida no mínimo digna.
Graças às manifestações da sociedade e leis específicas, o olhar sobre as diferenças humanas está mudando. Pouco a pouco, novos conceitos e condutas são incorporados pela sociedade. E principalmente por designers, arquitetos, engenheiros, fabricantes e até administradores públicos que reaprendem a pensar o projeto. O desenho universal prega soluções simples e holísticas, que atendem uma abrangente tipologia humana, sem tecnologias sofisticadas e a custos acessíveis – uma construção adaptável sai no máximo 1% mais caro que as convencionais.
Agora, há parâmetros estipulados em normas e que podem ser discutidos, cobrados pela sociedade e fiscalizados pelas autoridades.
Tecnologias de automação, que estão mais em conta, também são disponibilizadas para derrubar barreiras e facilitar a vida de todos os cidadãos.
O fim do homem padrão
O desenho universal recria o conceito de homem padrão – nem sempre o homem real. Seu conceito nasceu nos anos de 1960, nos Estados Unidos, como uma resposta à discussão sobre essa padronização do homem, definindo um projeto de produtos e ambientes que possam ser usados por todos, na sua máxima extensão possível, sem necessidade de adaptação ou projeto especializado para pessoas com deficiência.
Ele começou a ser discutido no Brasil 20 anos depois, com o objetivo de conscientizar profissionais da área de construção sobre a acessibilidade. E agora vem sendo apregoado em normas e leis, e é tema obrigatório na grade curricular dos cursos universitários correlatos, para formar profissionais capazes de atender às novas exigências e premissas.
Um projeto universal inclui produtos acessíveis para todas as pessoas, independentemente de suas características pessoais, idade ou habilidades. “A meta é que qualquer ambiente ou produto seja alcançado, manipulado e usado, independentemente do tamanho do corpo do indivíduo, de sua postura ou mobilidade”, explica Silvana Cambiaghi, autora do livro Desenho Universal (Editora Senac).
O desenho universal também valoriza o desenvolvimento do usuário ao longo de sua vida, uma vez que suas características e atividades mudam de acordo com a fase. A criança, por exemplo, de dimensões menores, não consegue alcançar ou manipular uma série de objetos, por não serem seguros, ou porque não foram pensados para elas. Assim como os idosos com menor resistência, mais baixos, com menos audição e outras dificuldades que atrapalham a execução de várias atividades. Além das situações provisórias, como uma fratura, um torcicolo, ou uma gestação; ou a aquisição inesperada de alguma deficiência, seja ela física, psíquica ou sensorial, que podem complicar a rotina das pessoas. “O ser humano normal é precisamente o ser humano diverso, e é isso que nos enriquece como espécie. Portanto, a normalidade é que os usuários sejam muito diferentes e que os projetos propiciem usos distintos”, ressalta Silvana.
A caminho da acessibilidade
Há hoje no Brasil cerca de 27 milhões de deficientes e 19 milhões de idosos. Estima-se que, dentro de dez anos, a população com mais de 60 anos chegará a 30 milhões, criando novos requisitos para a cidade e seus espaços. “Os números chamam a atenção para a necessidade do planejamento de espaços cujo acesso seja garantido a qualquer usuário, com autonomia e independência”, afirma Silvana.
Da década de 1980 para cá a palavra acessibilidade começou a se incorporar em nosso vocabulário. Em 1985, foi publicada a NBR 9050, Acessibilidade a edificações, mobiliário, de espaços e equipamentos urbanos (disponível no site www.acessibilidade.org.br), da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), revisada pela primeira vez em 1994. Em 1988, a Constituição Federal já se referia ao direito à acessibilidade aos portadores de deficiência sem, no entanto, cobrar o seu cumprimento. Só em 2000, 12 anos depois, o assunto originou as Leis Federais 10.048 e 10.098.
O grande impulso para a aplicação da lei foi a revisão da NBR 9050 em 2004, que além de considerar as pessoas com deficiência, ampliou a abordagem para quem tem dificuldades de locomoção, idosos, obesos, gestantes etc., e ressaltando o conceito de desenho universal. Em dezembro do mesmo ano, finalmente as leis 10.048 e  10.098 foram regulamentadas pelo Decreto 5296 (disponível no sitewww3.dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/23/2004/ 5296.htm), estabelecendo normas e critérios para a promoção da acessibilidade.
Mesmo com parâmetros estipulados na forma de lei, seu cumprimento só se tornou obrigatório e passível de fiscalização quando, em 2005, o Ministério das Cidades lançou o Programa Brasil Acessível, com o intuito de estimular e apoiar os governos municipais e estaduais a assegurarem a circulação. Entre as ações previstas estavam a difusão do desenho universal e a publicação de conteúdos temáticos, disponíveis no sitewww.cidades.gov.br.

A prefeitura de São Paulo foi uma das pioneiras em promover a acessibilidade e a inclusão, pela criação da Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (Seped), oficializada em 2007 pela lei municipal 14.659. Uma das primeiras iniciativas da Secretaria foi incentivar a construção de espaços de moradia acessíveis a todos, lançando em parceria com o Instituto Brasil Acessível os Selos de certificação de Habitação Universal e Habitação Visitável, também apoiados no desenho universal, “para criar um estoque de imóveis acessíveis”, enfatiza a arquiteta e gerontóloga Adriana Romero de Almeida Prado, da Coordenadoria de Gestão de Políticas Públicas (Cogepp) da Fundação Prefeito Faria Lima. Em 2006, as calçadas da cidade começaram a ser reformadas para garantir o conforto e a segurança de todos, graças ao Programa Passeio Livre, que lançou uma cartilha, disponibilizada no site ww2.prefeitura.sp.gov.br/passeiolivre.

Automação como ferramenta
Com a redução dos custos, a automação é a bola da vez. A mesma tecnologia e os equipamentos utilizados no controle residencial podem ser customizados para prover autonomia e segurança, trazendo de volta a confiança e autoestima do idoso ou da pessoa com deficiência. “A integração de interfaces personalizadas com os sistemas de automação permite que praticamente qualquer dispositivo eletromecânico seja comandado à distância”, explica o engenheiro elétrico Caio Bolzani.
O uso da voz ou de telas de toque com alto nível de contraste e com grandes caracteres propicia o acesso aos controles de iluminação, climatização e permite a abertura remota de portas, janelas e portões, entre outros. “Dentre as inúmeras aplicações, o agendamento de tarefas tem se destacado pela sua simplicidade e eficiência, lembrando as pessoas sobre o horário dos seus medicamentos, refeições etc.”, ressalta Bolzani.
O sistema de monitoramento constante de todas as funções da residência permite que parentes sejam alertados em casos de emergência, como uma queda, ou evitando situações de perigo, como, por exemplo, interromper o fluxo de gás no caso do fogão ser esquecido aceso.
Recentes avanços dos sistemas de controle residenciais e da tecnologia sem fio oferecem um nível maior de conforto com custos acessíveis e podem ser utilizados com facilidade por pessoas com restrições ou qualquer morador da casa.
A formação profissional
Os princípios do desenho universal e o conhecimento das normas estão sendo divulgados na graduação dos cursos de arquitetura e engenharia, “de forma transversal”, afirma o arquiteto Paulo Eduardo Fonseca de Campos, professor de projetos da FAUUSP. E em cursos extracurriculares oferecidos por entidades, como o Instituto Brasil Acessível, e materiais impressos ou eletrônicos, distribuídos gratuitamente pelo poder público e até pela iniciativa privada.
Universidades, como a Uninove, dispõem de curso de pós-graduação em acessibilidade. “Entre os objetivos está formar profissionais capazes de garantir espaços e ambientes mais acessíveis e sem barreiras, capacitando-os para o atendimento a quesitos legais, uma vez que há prazos de adaptação definidos pelo Decreto 5296”, destaca Marcelo Pupim Gozzi, coordenador de pós-graduação da Universidade.
Os dez princípios do desenho universal
Equiparação nas possibilidades de uso: o design é útil e comercializável às pessoas com habilidades diferenciadas;
Flexibilidade no uso: o design atende a uma ampla gama de indivíduos, preferências e habilidades;
Uso simples e intuitivo: o uso do design é de fácil compreensão;
Captação da informação: o design comunica eficazmente ao usuário as informações necessárias;
Tolerância ao erro: o design minimiza o risco e as consequências adversas de ações involuntárias ou imprevistas;
Mínimo esforço físico: o design pode ser utilizado de forma eficiente e confortável;
Dimensão e espaço para uso e interação: o design oferece espaços e dimensões apropriadas para interação, alcance, manipulação e uso;
Circulação de largura de 0,90 m e altura de 2,10 m;
Vãos de porta de 0,80 m (mínimo);
Diâmetro mínimo de 1,50 m para manobras de uma cadeira.


Leis e decretos
NBR 9050
A versão de 2004 da norma técnica avançou quanto a parâmetros antropométricos. De acordo com a arquiteta Adriana Romero de Almeida Prado, que também é coordenadora da Comissão de Acessibilidade a Edificações e ao Meio (CE 01), do Comitê Brasileiro de Acessibilidade (CB 40), “a NBR 9050/2004 define o que é área de transferência, área de manobra e área de aproximação. E também demonstra as medidas para alcance manual e visual”. Quanto à comunicação e sinalização, criou símbolos para sanitários, para circulação (indicando rampas, escadas, elevadores entre outros); estipula tamanho de letras e distâncias, bem como contrastes de cores. No capítulo de circulação, há a definição dos pisos táteis de alerta e de orientação e onde devem ser utilizados. Também altera a declividade das rampas assim como detalha a acomodação transversal da circulação em calçadas. No item sanitário, especifica quais as áreas de transferência para a bacia sanitária, para boxe, para banheira e a localização de barras de apoio, bem como medidas mínimas para um boxe comum de vaso sanitário.

Decreto 5296
Regulamenta a lei 10.098, obrigando todo e qualquer projeto arquitetônico ou urbanístico a atender aos princípios do desenho universal, tendo como referências básicas as normas da ABNT, a legislação específica e as regras contidas no decreto. Prevê a inclusão do desenho universal nas grades de disciplinas dos cursos de arquitetura, engenharia e correlatos, que passam a se responsabilizar pelo atendimento do projeto às normas de acessibilidade. Segundo a arquiteta Adriana Romero de Almeida Prado, “nenhum financiamento público é liberado se o projeto não respeitar a acessibilidade”.

fotos Sandra Perito

Casa para a vida toda
Este sobrado em um condomínio fechado, em Taubaté, SP, segue os conceitos do desenho universal e tem ambientes que podem ser adequados conforme a necessidade do usuário. O acesso à casa acontece por uma rampa suave, de 6% de inclinação, com guia rebaixada para pedestres. Os ambientes foram idealizados com espaço suficiente para manobra de cadeira de rodas.
Embora os quartos fiquem no superior, o projeto apresenta infraestrutura para colocação de um elevador, caso o morador necessite do benefício no futuro. No entanto, um ambiente no piso térreo, anexo a um banheiro totalmente acessível, permite uso diversificado: como por exemplo uma suíte, no caso de limitação temporária ou permanente de algum morador. Os banheiros foram projetados prevendo-se a instalação de barras de apoio, possuem o registro na entrada do boxe e não embaixo da queda de água, evitando que a pessoa se queime com a água quente. Sensor de presença na escada e corrimão iluminado colaboram com uma circulação vertical segura. Pia com gabinetes removíveis e tampos com variações reguláveis para adaptação à altura do morador, forno de parede instalado em altura segura para utilização, fogão tradicional ou de bancada (cooktop), com gabinetes volantes, que podem ser usados como áreas extras de apoio, são algumas características do projeto da cozinha. A despensa anexa evita armários altos na cozinha. A lavanderia também se integra ao ambiente e dispensa o morador de sair da casa para uso.

Texto extraído de http://www.revistaau.com.br