Um clube de luta livre em que a maioria dos lutadores é deficiente é o foco de um novo documentário. O diretor, o neo-zelandês Heath Cozens, diz esperar que o filme desafie as percepções de certo e errado das pessoas quando o assunto é deficiência.

Em um prédio público tradicional no centro de Tóquio, um homem paraplégico dá uma cabeçada em outro. As pernas dos dois estão amarradas. Deitados no ringue, eles lutam até o gongo marcar o fim do assalto.

Chega a próxima luta e Shintaro “Sambo” Yano, um homem de 46 anos com paralisia cerebral, entra no ringue.

Seu oponente é Yukinori “Antítese” Kitajima, o velho arqui-inimigo de Shintaro nas lutas. Mas Kitajima não é deficiente, e é nitidamente mais forte do que Shintaro.

“Ele é o Hitler dos deficientes”, grita a mestre de cerimônias ao apresentar Kitajima. E a luta começa.

Jornalista e diretor de documentários, Heath Cozens acompanha essas lutas há mais de cinco anos. Ele se sentiu desconfortável em sua primeira noite de combates, ao ver deficientes sendo espancados até sangrar.

“Fiquei tão chocado que quase tive vontade de rir”, afirma. “Depois me senti mal por ter pensado em rir de deficientes, e me envergonhei. Não conseguia saber se era exploração, entretenimento ou igualdade de fato.”

Mudança de visão

No começo ele achou que tudo aquilo era um abuso, sobretudo quando soube que não-deficientes encaravam deficientes muito mais fracos. Ele até pensou em denunciar o clube, mas sua visão mudou após começar a conhecer e a filmar os lutadores – e essa foi a origem do documentário.

Com o nome do grupo de luta, Dog Legs acompanha cinco membros do clube, em suas batalhas dentro e fora do ringue. Para Cozens, foi uma chance de mostrar o cotidiano dessas pessoas e os contrastes de suas experiências de vida e de luta.

“Essas pessoas sofrem preconceito extremo em quase todos os aspectos de suas vidas, mas o clube oferece a elas uma saída”, diz o diretor.

O epicentro do filme é Shintaro – a estrela do Dog Legs. Ele começou o clube há mais de 20 anos, em 1991, após uma briga com outro deficiente em torno de uma mulher. Naquela hora, eles perceberam como haviam gostado da competição e do aspecto físico da pancadaria.

Juntamente com Kitajima – seu amigo de longa data e parceiro de luta livre -, o Dog Legs nasceu com esse objetivo: ser um lugar para encontro e lazer de pessoas com deficiência, bem longe dos preconceitos do dia a dia.

O clube desde então cresceu e já soma mais de 40 lutadores. Centenas de pessoas comparecem às lutas – a maior parte é composta por deficientes e seus colegas. É uma comunidade de verdade, afirma Cozens, e a deficiência está no coração de tudo.

O grupo inclui pessoas com deficiências diversas, de esclerose múltipla a doenças mentais, e todos têm sua chance entre as cordas.

Sem autopiedade

Yuki Nakajima sofre de depressão severa e passa atualmente por tratamento contra o câncer. Ele costuma chorar ao entrar no ringue como o alter ego “Hopeless Goro” (Goro sem esperança, em tradução livre).

Fora do ringue, ele é amigo dos outros membros do clube. Todos fazem piada das deficiências e dificuldades dos outros.

“Foi quando eu disse a vocês que tinha câncer“, diz Nakajima. “Shintaro olhou e disse: ‘passe a cerveja‘. Foi ótimo, isso é a cara do Dog Legs.”

Fora do ringue, Nakajima trabalha como cuidador de outro colega de luta. OogaL’Amant” (O Amante) Ohga tem paralisia cerebral, e passa a maior parte do dia em seu pequeno apartamento, desde que a deficiência e o alcoolismo afetaram sua saúde de maneira grave.

Tecnicamente, os lutadores são divididos em quatro “categorias”: os que lutam deitados, os que ficam sentados, aqueles que combatem de pé e os da categoria aberta. Essa última tem regras mais soltas, que incluem todos os lutadores amarrados ou apenas cabeçadas. Mas há casos em que essas regras são completamente ignoradas, conta Cozens.

Entrega e reconhecimento

Daí temos Ohga, pesando apenas 39 kg, entrando no ringue contra sua mulher, de 80 kg. As pernas delas estão amarradas para tentar deixar a luta mais igual, mas ainda assim ela consegue se lançar no ar para cair com tudo sobre Ohga, ou levantá-lo até ele desabar no ringue.

Parece impossível que Ohga goste desse espancamento, mas depois de uma luta em que sai vitorioso ele pega o microfone e diz, triunfante: “Esse é o único lugar em que posso lutar e ganhar. Vou lutar nesse ringue enquanto viver.”

Fica claro que o ringue é o único lugar em que Ohga se sente igual aos outros. Cozens diz que isso explica a entrega dos lutadores entre as cordas.

“Não importa se você é paraplégico, tem depressão ou paralisia cerebral, todo mundo pode entrar naquele ringue e lutar. As pessoas olham para eles nas ruas, mas nunca esperariam que fossem estrelas numa noite de lutas.”

Ele ressalta que muitas pessoas poderão se sentir desconfortáveis ao ver o filme. “Muitas pessoas ficam sem jeito ao olhar para os corpos de pessoas com deficiência, mas essa é uma das coisas mais importantes sobre o filme. Essas pessoas estão dizendo de forma aberta: ‘Olhe para mim fazendo isso e perceba como meu corpo fica’.”

Enquanto a vida no ringue pode ser divertida, fora dali a relação entre dois membros – Shintaro and Kitajima – é intensa. Eles são muito próximos e se veem como irmãos. Mas Kitajima instiga Shintaro como ninguém: diz que ele é um “perdedor”, dá tapas na cara do amigo e o pressiona a treinar quando ele está cansado.

À medida que o documentário avança, o elo entre os dois entra cada vez mais em foco. Chega o momento do fim da batalha de 20 anos entre os dois. Shintaro decide se aposentar do Dog Legs. Diz querer ser feliz e encontrar um amor – mas antes precisa encarar Kitajima mais uma vez numa luta.

“Não serei um aleijado patético mais uma vez”, diz Shintaro. “Vou vencer Kitajima.”

Recepção do público

O filme Dog Legs estreou nos EUA no festival Fantastic, em Austin, mas ainda é inédito no Reino Unido.

Mat Fraser, um apresentador e ator que tem deficiências relacionadas à talidomida, afirma que o público britânico terá dificuldade para entender o filme, e provavelmente ficará chocado.

Fraser, que conviveu com o clube no Japão, disse esperar que as pessoas encarem a obra com a mente aberta. “É preciso contextualizar a história no Japão, onde ser um homem significa ser um guerreiro. Esses homens estão sendo guerreiros ao entrar no ringue”, ele afirma.

O apresentador considera o clube de luta como algo totalmente positivo, mas o fã de luta livre Tom Caster – que tem paralisia cerebral – afirma que uma experiência semelhante na Inglaterra, por exemplo, poderia ser preocupante.

“Está claro que o clube é 100% diversão, mas acho que (um clube semelhante na Inglaterra) seria mais um retrocesso à época dos shows de bizarrices do que um sinal de igualdade”, ele afirma. “Ficaria muito desconfortável com pessoas achando graça ou se divertindo diante de uma luta minha com outro deficiente.”

O diretor Cozens diz que seu principal objetivo com o documentário é desafiar as “reações intempestivas das pessoas sobre o que é certo ou errado quando o assunto é deficiência”. E se o clube e a relação entre os lutadores são “certas” é algo que fica, em grande parte, para o espectador decidir.

Fonte: BBC