É certo que vivemos uma suposta era da inclusão da pessoa com deficiência. São muitos avanços e conquistas pelo menos no aspecto formal e jurídico na busca por afirmação de direitos e de reconhecimento da pessoa com deficiência como parte ativa da sociedade. Mas por outro lado, ainda vivemos um tremendo retrocesso na leitura social da condição de deficiência, sobretudo diante da ótica das religiões.

Uma infeliz herança cultural que alimenta uma imagem equivocada e sustenta interpretações deturpadas da pessoa com deficiência. As mais diversas religiões tratam a deficiência, seja ela qual for, como doença, colocando a pessoa nessa qualidade em um quadro de sofrimento abominável, como se o fato de ser pessoa deficiência fosse algo demoníaco ou uma condição maligna.

Na última semana essa visão infeliz da deficiência foi alimentada em uma novela brasileira com vasta repercussão nacional. Em “O outro lado do paraíso”, da Rede Globo, a personagem Mercedes, interpretada pela atriz Fernanda Montenegro, protagonizou a suposta cura de Raquel (Erika Januza), um “milagre” por meio de práticas xamanistas.

Foto de Raquel, personagem da novela global, sendo iluminada em uma cama de hospital
Foto de Raquel, personagem da novela global, sendo iluminada em uma cama de hospital

Ficou claro que a finalidade desse curandeirismo era libertar a mulher que ficou paraplégica de “tamanho sofrimento”. Com todo respeito à liberdade religiosa que é um direito fundamental, assim como à liberdade artística e cultural, mas alimentar essa visão maligna e doentia da pessoa com deficiência em TV aberta é uma afronta à luta incessante de milhões de brasileiros que buscam reconhecimento social enquanto cidadãos e sujeitos de direito em um Estado formalmente laico.

Quando o assunto é o respeito às diversidades nós, pessoas com deficiência, buscamos a mesma compreensão social e o engajamento com que se discute o combate ao racismo ou as questões de gênero, queremos ser respeitados como cidadãos, gente que faz parte da sociedade.

Com todo respeito à fé que cada pessoa carrega dentro de si, seja qual for a sua religião, evangélica, católica, espiritualista ou qualquer outro tipo de crença, temos que deixar claro que a deficiência deve ser pensada como uma característica ou qualidade da pessoa humana.

Em uma visão racional de fé, ainda afirmo que a deficiência não pode ser encarada como castigo, carma, provação, coisa demoníaca entre outras classificações religiosas para situações negativas que assolam a vida humana.

Uma coisa é a pessoa com deficiência ter suas próprias convicções religiosas, professar uma fé e nela depositar os seus valores por livre arbítrio. Outra coisa completamente diferente é permitir que prevaleça na sociedade atual essa visão equivocada e preconceituosa de que a pessoa com deficiência é um ser doente que necessita ser curado e liberto a qualquer custo. Jamais!

Thiago Helton

Source: Pessoas com deficiência e os equívocos das religiões – Prisma – R7 Thiago Helton