Foto: Julio Cordeiro/Agência RBS
 
por Nathália Carapeços
 
Dedé foi o nome eleito por João Vicente, seis anos, para batizar seu cachorro vira-lata. A escolha não foi por acaso: a repetição de sílabas facilita a pronúncia para o menino que tem dificuldade em formar palavras e se mover sozinho. O garoto e o cachorro são os responsáveis pelas estripulias na sala do apartamento no bairro Bom Fim, em Porto Alegre – a cadeira de rodas não impede a brincadeira e, a cada pulo de Dedé, João alarga mais o sorriso. Sentada no sofá, a mãe de João, Lau Patrón, 30 anos, acompanha a bagunça de perto. Para ela, a farra entre menino e cachorro representa tudo o que o filho conquistou nos últimos cinco anos, quando a vida da família virou do avesso após 71 dias no hospital.
          
Uma diarreia que não passava resultou em uma longa internação e no diagnóstico de uma doença rara, a SHUa (Síndrome Hemolítico Urêmica Atípica), que afeta o sistema imune e pode acarretar entupimento de vasos pelo corpo. O colapso de João levou a um AVC que comprometeu as funções motoras, da coordenação à fala.
 
A jornada repleta de grandes vitórias diárias se transformou no projeto Avante Leãozinho. Na internet, Lau compartilha parte de sua rotina com João e também promove campanhas para custear os tratamentos – recentemente, ela viralizou com o vídeo da palestra “A Solidão das Mães Especiais”. Agora, chegou a vez de a história dos dois virar livro: a publicitária lança 71 Leões, com sessão de autógrafos na Casa Guandu neste sábado, 27 de outubro. O foco são os altos e baixos do período de internação quando descobriu a SHUa.
 
                    Foto: Julio Cordeiro/Agência RBS
                       Foto: Julio Cordeiro/Agência RBS
 
– Foi um momento horrível, achei que ia perder o João. Tu sentes que vai perder tudo e não tens o controle. Mas recebi muito mais do que me foi tirado, o João sobreviveu, voltou para casa. Naquele momento, não pensava no pós, como seria a vida depois. Ele só ficou com as sequelas do AVC e as pessoas acham que é “só”. Mas poderia ter sido muito pior, podia nunca ter saído do respirador, ficado com hemodiálise. É só o AVC. Meu filho saiu vivo – relembra Lau.
 
As sequelas trouxeram para João uma nova condição de vida, e ele passou a integrar um grupo de 45,6 milhões de brasileiros. Segundo dados do Censo Demográfico 2010, divulgado pelo IBGE, esse é o número de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil, ou seja, 24% da população. Entre eles, 3,5 milhões têm até 14 anos.
 
A situação de João transformou a rotina da mãe, que precisou redefinir suas perspectivas e expectativas e se jogar no que ela chama de “maternidade atípica”.
 
– Os meses depois da volta para casa foram devastadores. Tem um processo de aceitação, e para mim aconteceu de forma natural, mas não tem receita. Passei tantos dias achando que ele ia morrer, que o fato de ele ficar vivo me trouxe aceitação. Vivi um luto dentro do hospital, o principal. Mas claro que tem coisas que voltam. Na primeira campanha que a gente fez (ela e o ex-marido, Diogo), precisávamos editar imagens dele. Olhar aquilo era muito difícil, ali foi outro momento do luto. O livro também me fez viver uma forma de luto. Foi um luto com renascimento, assim que eu enxergo. Não podemos julgar outras mães, cada uma chega nesse momento de um jeito – avalia.
 
Um dos principais pontos de atenção após o diagnóstico de uma criança é justamente o período de acolhida do quadro pelos pais. Esse momento de crise faz parte do processo, explica a psicóloga Silvia Bitencourt, especialista em terapia cognitiva e integrante do Kinder – Centro de Integração da Criança Especial:
 
– É preciso trabalhar, desde o início, o luto das mães por esse bebê que não nasceu exatamente como elas imaginavam ou pela criança que passou a ter uma nova condição, assim como já desenvolver o vínculo mãe, criança e família. É tentar mudar o olhar para ver as possibilidades para além da deficiência, o que aquele bebê ou criança consegue fazer, como podemos estimular. O ímpeto das famílias precisa ser na busca por informação, como lidar com essa situação no dia a dia.
 
A rotina de trabalho, escola e lazer idealizada pela maioria das mães é uma das primeiras áreas impactadas quando há um filho com deficiência. Dependendo da condição da criança, terapias de diferentes tipos são necessárias diariamente, além de ajuda para tarefas básicas, como comer, tomar banho, trocar de roupa, se locomover etc. É normal as mães quererem controlar tudo, estar sempre perto, destaca Luciana Bridi, psiquiatra, voluntária no Instituto Autismo e Vida e mãe de um menino autista:
 
– Ela quer estar ali fazendo as coisas, e a situação de trabalho é relevante, pois muitas vezes precisa reduzir a carga ou parar mesmo. Eu tive que manter o freio de mão puxado. Acabei, pelas circunstâncias, ficando mais disponível para as crianças, mas tinha um revezamento com o marido, o leva e traz das terapias. É um diagnóstico que impacta a tua vida. As terapias são diárias, e como incluir isso na rotina de uma família? Como colocar na logística? Muda tudo, não dá para negar, e é difícil. É uma correria também atrás de um esclarecimento geral sobre a doença. Há um baque com relação ao gasto, porque o atendimento apropriado é difícil e nem tudo o plano cobre. É uma série de mudanças para além do diagnóstico.
 
Empresária e workaholic assumida, Lau Patrón precisou rever sua agenda lotada para incluir uma série de compromissos que até então não existiam. Seu foco passou a ser a recuperação das sequelas do AVC sofrido por João e também um mergulho profundo na SHUa, para entender do que se tratava a doença do filho.
 
Hoje, ele vai para a escola pela manhã e, à tarde, faz os tratamentos de rotina – fono, fisioterapia e terapia ocupacional estão no roteiro. Uma semana por mês, mãe e filho vão a Curitiba para um superintesivo de fisioterapia.
 
– As pessoas falam “Ah, ela ficou só cuidando do filho”. Num caso desses, é reavaliar tudo de tempos em tempos, organizar a agenda, ter metas, prazos, pensando no risco envolvido, comandar reuniões interdisciplinares, lidar com o ego dos especialistas, aprender sobre medicina, química, física, sobre Direito, fazer pesquisa sobre medicação e tratamentos, afinar o inglês para a leitura de materiais. Nunca aprendi tanto. Estudei inclusão, agora isso se transforma em um nova vida profissional. Fico triste por as pessoas diminuírem o que nós, mães atípicas, fazemos. Na verdade, somos as maiores especialistas em inclusão e no caso dos nossos filhos. As pessoas te olham como se fosse uma coitada – conta a publicitária, que hoje é escritora e dá palestras.
 
                         Foto: Julio Cordeiro/Agência RBS
                            Foto: Julio Cordeiro/Agência RBS
 
João necessita de ajuda para tarefas simples, como comer e escovar os dentes – a mãe ou a avó materna, Ana Luiza, são as responsáveis por auxiliar o menino. Lau é separada, o que não impede uma relação próxima entre pai e filho. Mas os pequenos desafios do dia a dia, por questões logísticas, acabam ficando a cargo das duas mulheres.
 
– João tem pequenas vitórias que não são pequenas, são gigantes. Não sei quando ele vai andar, mas passei a curtir o caminho dele. Com ele, tem o valor das pequenas coisas. Hoje, João pegou o lápis de um jeito completamente diferente, por exemplo. Desisti da faixa de chegada, passou a ser prazeroso o caminho. E também tirou um peso dele – ressalta Lau.
 
O mais difícil para mãe e filho, no processo de redefinir perspectivas de vida, foi o julgamento alheio e a falta de empatia. Ao pedir transporte via aplicativo, os cancelamentos são frequentes quando o motorista descobre que o menino usa cadeira de rodas. No supermercado, mais de uma vez a frase “Tu não percebeu que está atrapalhando com esse andador aqui no meio do corredor?” foi ouvida pela família. Na visita ao parquinho, muitos pais tiram os filhos de perto de João como se ele pudesse transmitir alguma doença. É comum ouvir cochichos de adultos explicando para os filhos que o garoto tem “problema” ou “defeito”.
 
– No início, tinha vergonha da minha situação. Achava que incomodava, ficava constrangida. Todo mundo olhava para ele. Depois, percebi que o olhar das pessoas estava errado, o olhar das pessoas é deficiente, as soluções criadas são deficientes. Me empoderei para poder devolver a palavra, mostrar que o João não é o problema. Para dizer: “É assim que meu filho caminha”. Precisava fazer isso para mostrar para o João que ele não é o problema – conta Lau.
 
O julgamento vai além. Não é incomum definirem a maternidade dessas mães como uma missão que não permite outras experiências. Lau precisou se redescobrir mulher, amiga, namorada, profissional. Está aprendendo a se permitir. Hoje, tem namorado. Já reservou um tempo de sua rotina para fazer pole dance – o que gerou críticas de outras mães em seus perfis nas redes sociais. Gosta de viajar e leva o filho junto: os dois já passaram 20 dias no Chile.
 
– As pessoas pensam que a rede de ajuda é só para a criança, mas é para a mãe também. Ela é uma pessoa, quer ir no cinema, namorar, ler um livro, tomar um banho. Tenho pensando em falar mais da sexualidade dessas mães. Muitas acham que não temos mais vida sexual. Ouço cada história de julgamento, de mulheres que são levadas à forca porque querem um espaço para um novo relacionamento. O meu momento com o João é sagrado, não troco isso por nada. Mas tenho o meu espaço de ser Laura. Claro que têm fases em que a rotina está mais puxada. A sensação é de que a vida nunca mais vai se abrir, só que o tempo é incrível, e o cenário vai mudando – explica.
 
                         Foto: AFP
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