Não tenho uma história triste para te contar. Tenho a história da minha família – define Cintia Lima, 41 anos, logo no início da conversa.

Foto: André Ávila/Agência RBS
Foto: André Ávila/Agência RBS
 
por Nathália Carapeços
 
A bióloga se preocupa com os rótulos que rodeiam a maternidade fora dos padrões. Seu filho, Artur, oito anos, é cego desde o primeiro ano de vida. Aos quatro meses, foi diagnosticado com um retinoblastoma. O tumor precisou ser removido por cirurgia, e o menino acabou perdendo a visão. Os planos sobre como criar o filho mudaram radicalmente: qual a melhor forma de ensinar uma criança que não enxerga? No início, ela não sabia os meios, mas tinha um objetivo traçado. Não queria um menino superprotegido pela família e sem autonomia.
 
Nossa ideia sempre foi tratá-lo da forma mais normal possível, não quero que ele se sinta incapaz. Minha família queria colocar no colo, mas eu não deixei. Não vou estar a vida toda com ele – conta Cintia, relembrando o momento do diagnóstico. – A médica chegou e me disse: “É um tumor, é grave”. A palavra tumor abriu um buraco no chão. Ele estava normal, não tinha caroço, nada. Nunca foi uma opção para mim negar. Chorei por dois dias, mas passou. Meu foco foi a luta atrás de médicos, a parte prática. Claro que sofri, mas não adiantava, tinha que enfrentar.
 
Dados do IBGE mostram que a deficiência mais comum entre as crianças de zero a 14 anos no país é a visual, de casos leves à cegueira. Para mães que enxergam, como é o caso de Cintia, tentar entender um mundo que é traduzido além das imagens é um exercício diário. A bióloga buscou informação na internet, auxílio de associações e escolas. O primeiro passo foi entender que Artur não iria aprender pela imitação, conta:
 
Me preocupava com tudo, de como ensinar a comer até ir no banheiro. A professora dele me disse para relaxar, que ele ia ter o tempo dele. Não ia me imitar, mas eu precisava incentivar. Não vai me ver comendo, por exemplo. Como classificar as pessoas sem a imagem? Se eu parar de enxergar hoje, tenho uma memória. Ele não teve, fez a cirurgia com um ano e quatro meses.
 
                        Foto: André Ávila/ Agência RBS
                           Foto: André Ávila/ Agência RBS
 
Até dar presentes se revelou um desafio. Cores não fazem diferença, o foco precisava ser a textura e o som. Em lojas e sites convencionais, a tarefa de encontrar algo com que Artur possa se divertir não é fácil. Outra dificuldade é a socialização com as crianças. Ele tem personalidade forte, gosta de comandar as brincadeiras, o que não é sempre bem visto pelos pequenos. Seus amigos costumam ser crianças um pouco mais velhas que entendem a condição de deficiente visual do menino e tentam incluí-lo de forma mais consciente. Apesar disso, as “derrotas” para o preconceito são exceção na história deles. Entre as raras situações, está a vez que ele deixou de ser convidado para uma festa de aniversário porque o “lugar era pequeno e ele podia esbarrar nas coisas”. Também não foi possível encontrar um curso de inglês apto a recebê-lo – Artur estuda em uma escola regular que tem assistência para crianças cegas e está no segundo ano.
 
A rotina da família inclui escola em tempo integral para as crianças e trabalho para os adultos – Artur é fruto de um relacionamento anterior de Cintia, que casou-se novamente e teve outro filho, Lauro, de dois anos e 10 meses. A decisão de engravidar uma segunda vez gerou questionamentos de pessoas próximas: e se a criança tivesse o mesmo tumor de Artur? Uma minoria chamou Cintia de “louca”, relembra, emocionada:
 
Nunca passou pela minha cabeça não ter. Depois que o Lauro nasceu, algumas pessoas falaram que achavam que eu não teria coragem. Eu não ia ter um filho com o mesmo pai do Artur. Sei que é genético, mas nós queríamos. Claro que fiz os exames no Lauro, mas nunca teve nada. E se precisar passar tudo de novo? Pensei que eu não escolhia, não controlava. Nunca deixei o medo me dominar.
 
O lazer tem lugar de destaque no dia a dia da família, que mora na Zona Sul de Porto Alegre. Artur adora praças e brinquedos de shopping. Também se diverte subindo e descendo as rampas da Fundação Iberê Camargo, conta Cintia. Praia é um de seus lugares favoritos. Os passeios costumam ser em locais fáceis de explicar e que tragam sensações. Cintia prioriza seu tempo livre, assim como o trabalho. Parar nunca foi uma opção.
 
Sempre pensava que eu precisava ficar bem. Gosto de trabalhar e precisava ficar bem para ele. Claro que tinha minha mãe como meu porto seguro, a sala dela era um colchão gigante no chão – lembra.
 
Todas as manhãs, Cintia tem o seu momento. O marido leva os filhos para a escola, e ela aproveita para tomar café com calma, aplicar seus cremes na pele e ver TV. É um período sagrado que ganhou ainda mais importância quando se deu conta de que não poderia esperar Artur ou Lauro crescerem para se dedicar também a si. Decisão resumida em um ditado que Cintia ouviu por aí:
 
“Preciso trocar o pneu do carro com o carro andando.” (risos). Não vou esperar meus filhos terem 18 anos para me cuidar. Quando ouvi essa frase, me enxerguei ali. A gente é tudo ao mesmo tempo e precisa ser boa em tudo, tem essa cobrança.