O técnico em eletrônica Gleison, 49, levava uma vida que poderia ser chamada de comum ao lado da mulher e do casal de filhos, em Belo Horizonte. Até que, em fevereiro de 2010, recebeu uma notícia que mudou sua história.
 
“Naquele instante fiquei sem chão, incrédulo, ao ouvir do médico que se tratava de uma doença neurodegenerativa, progressiva e sem cura. Não consegui dormir a primeira noite, apenas chorei e lamentei que não teria muito mais tempo com meus filhos.”
 
Ele havia sido diagnosticado com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). Ficou assustado. Pensou sobre qual seria sua qualidade de vida e a de sua família. Mas buscou informações e decidiu repelir a desesperança que tomava conta dele.
 
Hoje, sete anos após o baque, Gleison vive limitado. Prazeres como comer, abraçar e praticar esportes não fazem mais parte da sua rotina. Consegue mexer apenas os músculos da face. Ainda assim, diz que segue com vontade de viver.

“Me alimento por sonda gástrica desde 2011. Uso o respirador 24 horas por dia. Minha deglutição está comprometida e minha fala, ainda que difícil de entender, é meu porto seguro. Ela [a voz] e os olhos possibilitam interação com o mundo e permitem me expressar e conviver com a família e amigos”, afirma.
 
Para Gleison, poder se comunicar, mesmo que ainda de maneira frágil, é fundamental para o seu bem-estar. É assim que ele define com seus cuidadores e equipe multidisciplinar – fonoaudiólogo e fisioterapeuta – o que e como fazer para se adaptar diante de novas limitações.
 
Em entrevista ao TAB por e-mail – ele usa um sistema que reconhece o movimento da íris para controlar o computador -, deixou claro sua decisão de viver um dia de cada vez. Mas, assim como teve seu desejo respeitado, Gleison acredita que cada um deve poder resolver o que fazer com a própria vida quando se encontra nessa situação. Algo que, no Brasil, não é permitido. Cercada de polêmicas, a eutanásia segue proibida.
 
“As pessoas têm o direito de decidir se estão dispostas a viver e/ou sobreviver conectadas a uma máquina. Nas minhas condições – como tive saúde plena, uma vida ativa e de total independência por muitos anos – entendo claramente o que significa poder ter o direito de decidir sobre o próprio corpo”, afirma.
 
“Tenho medo da banalização da morte e da vida com uma possível legalização [da eutanásia]. É uma visão utilitarista da vida. Enfrentar um processo de morrer não é fácil, exige muito. Mas traz amadurecimento e exige reflexão”
 
Maria Goretti Maciel, diretora de Serviço de Cuidados Paliativos do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo
 
UM DIA APÓS O OUTRO – Click AQUI para ver o vídeo.
Assim como a eutanásia, o suicídio assistido também é proibido no Brasil. Os termos ou expressões referentes a esses procedimentos não constam no Código Penal, mas quem praticá-los pode ser acusado de homicídio doloso, com pena de até 20 anos. Uma reforma tramita no Senado desde 2012. O texto prevê que matar um paciente terminal pode deixar de ser crime em casos de ‘laços de afeição’, por exemplo. E se comprovada piedade ou compaixão, viraria um crime específico, com pena entre dois e quatro anos de prisão.
 
Para Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, não há nada na Constituição que barre a questão. A dificuldade maior está no meio jurídico. Ela afirma que a discussão no país é inviável por causa de autoridades que atuam baseadas em convicções religiosas.
 
“Temos de estar imbuídos de um propósito maior de compreensão e isso deve superar opiniões pessoais por uma sociedade responsável e autônoma. Deve ser uma decisão respeitada e livre de constrangimento. Não quero pensar que eutanásia seja objeto de negócio ou pressão, que alguém ceda sua vida para vagar um leito no hospital. A possibilidade de fazer eleições sobre a morte passa pelo direito à dignidade da pessoa“, afirma.
 
“A morte deve ser respeitada e acontecer no momento certo. Somos a favor da humanização da morte, evitando os prolongamentos abusivos. E evitar procedimentos fúteis não significa abandonar o paciente, mas cuidar, diminuindo o sofrimento”
 
Gilson Roberto, Presidente da AME (Associação de Médico-Espírita) do Brasil

Longe da política federal, na zona norte de São Paulo, Jane Queiroz, 42, está de luto pelo marido, que morreu em abril deste ano. A ELA matou Geraldo, 52, em apenas nove meses. “Deixamos de viver e trabalhar. Só falávamos de tratamento. Foram nove meses vivendo a doença. Diante do que vi ele passar, acredito que as pessoas devem ter o direito de dizer ‘não quero mais'”, afirma Jane.
 
Dentro de casa, com as duas filhas, Jéssica, 21, e Joyce, 20, Jane aprendeu a respeitar opiniões diferentes em uma situação extrema. As meninas são seguidoras do espiritismo, mesma doutrina que foi abraçada por Geraldo nos momentos mais difíceis. “Minhas filhas falam que as pessoas não têm o direito de decidir. Foi Deus que nos deu a vida, então não podemos tirá-la. Para elas, abreviar [a vida] é ir contra as leis de Deus. Temos de esperar a misericórdia.”
 
Jéssica afirma que sempre tentou ser realista e que a irmã e ela faziam tudo pelo bem-estar do pai. “Penso que nada acontece por acaso. Existe uma explicação para tudo. Ele viveu a doença sem aceitar e procurando uma cura. Muitas vezes quando dava de cara com uma nova limitação, desacreditava, e dizia que queria morrer. Não gostava de ouvir isso”, diz.

Querer morrer está associado, em cerca de 20% dos casos, a um quadro depressivo, afirma o psiquiatra Henrique Ribeiro, professor colaborador do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Entretanto, Ribeiro acredita que a eutanásia promove a autonomia do paciente. “É um ato de misericórdia, de preservação da dignidade. As pessoas deveriam ter esse direito quando os cuidados terapêuticos se esgotarem”, afirma.
 
Uma das grandes questões da eutanásia – muito além da vontade do paciente – é justamente o acesso aos cuidados paliativos. A presidente do Comitê de Terminalidade da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), Lara Kretzer, vê no sistema de saúde o limbo para uma discussão madura, uma vez que não existem políticas públicas de acolhimento aos que estão morrendo.
 
“Independentemente da opinião moral, as pessoas morrem mal no Brasil. Morrer deve ser uma decisão autônoma depois de um processo de tratamento e estratégias, farmacológicas ou não. Enquanto não conseguirmos oferecer a possibilidade de cuidados paliativos para que as pessoas possam viver os últimos dias sem sofrimento, não há como debater a eutanásia”, afirma.
 
“Possibilitar a eutanásia não é dar um cheque em branco para as pessoas serem mortas. Não é uma política pública impositiva, mas regulamentar e descriminalizar o direito de querer ou não continuar vivendo”
 

João Paulo Ferreira, integrante da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP

Gleison diz que, mesmo na sua atual condição, não pediria eutanásia. A saída que encontrou para que sua vontade continue sendo respeitada foi a DAV (Diretivas Antecipadas de Vontade), instrumento que garante a vontade do paciente sobre quais cuidados médicos serão adotados. Neste caso, o documento deixa claro o desejo de Gleison em não ser traqueostomizado. Ele entende que o procedimento, que o ajudaria a continuar respirando, prolongará sua vida, mas com bem-estar duvidoso. Além disso, ele diz que não quer delegar aos familiares e amigos o peso dessa decisão.
 
“Ficar sem falar é um custo emocional muito alto para mim e para aqueles que tanto amo, portanto, não estou disposto a pagar”, afirma Gleison. Ele diz ter consciência que essa decisão poderá provocar a sua morte.
 
Também conhecido como testamento vital e legalizado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) em 2012, esse instrumento é uma brecha para que o paciente participe de decisões sobre a sua vida quando não puder mais se manifestar.

A advogada Luciana Dadalto, doutora em ciências da saúde pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e criadora de um site sobre testamento vital,, explica que a posição de Gleison tem ligação direta com a ortotanásia. Ela afirma que, com esse recurso, é possível recusar tratamentos que têm a finalidade de prolongar a vida do paciente sem garantir bem-estar ou cura. Não há obrigatoriedade de registro em cartório ou forma ideal de redigir uma DAV.
 
De acordo com Andrey Guimarães Duarte, tabelião e presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção de São Paulo, houve um crescimento no número de DAVs desde a regulamentação. Em 2011 foram registrados 79 no Brasil. Já em 2013, 489 pessoas deixaram documentadas suas vontades para o fim da vida. Neste ano, até novembro, já foram registradas 504. Ele atribui o crescimento à segurança do médico em oferecer a ferramenta – uma vez que está estabelecida no código de ética médico -, e ao maior conhecimento da população sobre o tema.
 
Mas pode pedir eutanásia no testamento vital? “Pode. Mas não posso afirmar que será aceito porque vai contra a lei do país, mas pode abrir uma discussão judicial. Como tabelião, tenho obrigação de alertar sobre possíveis entraves. Mas por conta da possibilidade de a pessoa participar da discussão, não impediria [o pedido de eutanásia]”, afirma Duarte.
 
“Num futuro próximo, se a medicina paliativa e a ortotanásia não conseguirem diminuir o sofrimento, será uma questão de tempo, e os conselhos terão de regulamentar o suicídio assistido. Uma questão de tempo porque a autonomia dos pacientes deve ser considerada”
 
Mauro Aranha, psiquiatra e presidente do Cremesp

Aurélio Amorim, 46, mora na zona leste de São Paulo. Há três anos foi diagnosticado com ELA e procurou os cuidados paliativos para se adaptar da melhor forma à doença. Ele encontrou na família – o advogado é casado e tem três filhas – e numa equipe médica de cuidados paliativos o apoio para viver melhor.
 
Ele adotou o mesmo processo que Gleison. Fez o seu testamento vital, que está sempre junto do prontuário dos cuidados paliativos. “O que pode é garantir que eu não vou sofrer, me sedando, por exemplo. E só. Qualquer outro processo que envolva cirurgia ou entubar não é permitido”, afirma Aurélio. Nesse caso, está incluído o veto à reanimação, mesmo que a parada cardiorrespiratória seja decorrente de outra patologia.
 
Os especialistas que atendem Aurélio são da equipe de Maria Goretti Maciel, diretora de Serviço de Cuidados Paliativos do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo. Há 16 anos cuidando de doentes com diagnósticos que ameaçam a vida, ela vê nas DAVs um meio de garantir o direito do paciente. Para ela, abreviar a vida, seja da forma que for, é cortar o final de uma história.
 
“Ninguém deve sofrer inutilmente. O processo de morrer é uma oportunidade de perceber o sentido da vida. Os que defendem a eutanásia passam a ideia de uma necessidade de controle. Querer eutanásia é ter medo da vida”, afirma.

A evolução de uma doença terminal é dispendiosa emocionalmente para todos os envolvidos. Mas falando especificamente sobre os familiares, Maria Goretti afirma que a carga é algo “razoável”. “É preciso tolerar a morte do outro. A deterioração do corpo e o desgaste físico ajudam a compreender a morte. Em leitos de pacientes que estão morrendo, as pessoas enfrentam, vivem e se despedem com muita doçura. Ficam tristes, mas não desesperados.”
 
Iêda, 52, mulher de Aurélio há 25 anos, diz que a vontade do marido é soberana. Mas ela deixa transparecer alguma resistência. “A gente costuma pensar que enquanto não aperta, aceita tudo. Mas não queremos ver o outro lado. Vivendo um dia de cada vez é melhor do que ficar pensando no que vai acontecer. No primeiro desespero, o natural será procurar ajuda. A esperança na medicina, que vai ter um jeito de melhorar…. É nisso que a gente se agarra”, afirma.


Talvez por isso, o guardião do testamento vital seja o irmão de Aurélio. Mesmo assim, ele tem uma aliada forte, a filha Mayla, 23, recém-formada em direito. “Apoio totalmente qualquer decisão dele. Só ele sabe pelo que está passando. Sempre foi um pai presente, ativo. É egoísta não respeitar sua vontade. Vamos preservar a vida enquanto ele estiver bem, feliz e tranquilo”, diz a filha.
 
“O corpo é o dispositivo rebelde para o indivíduo e, portanto, é controlado por instituições e Estado. Democráticos e autoritários partem de um princípio de que o indivíduo só existe enquanto cidadão, e isso significa estar submetido a um conjunto de leis e regras”
 
Claudio Bertolli, professor de antropologia da Unesp
 

HORA DO DEBATE

Para médicos e juristas ouvidos pelo TAB, o debate raso e a falta de clareza sobre a eutanásia e práticas similares se devem ao temor de falar sobre a morte, culpa da raiz religiosa da cultura brasileira. Professor de antropologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Claudio Bertolli enxerga a eutanásia como uma questão de liberdade individual, assim como o aborto. Portanto, cabe ao indivíduo decidir o que fazer.
 
“Está nas mãos da sociedade, que, bem ou mal, dialoga com o Estado sobre o aborto, por exemplo. Para a eutanásia, entretanto, existe um pacto de silêncio sobre o que mais tememos na vida [a morte] e que, ao mesmo tempo, desejamos que seja sem dor e aquele espetáculo de UTI. Mas e se não acontecer dessa forma? Diante do sofrimento de uma doença irremediável, a saída que nós temos é o suicídio”, avalia Bertolli.
 
A juíza Mônica Silveira, autora do livro “Eutanásia: humanizando a visão jurídica”, fala que a liberdade ilimitada não é uma forma de proteger o cidadão. “Começa como permissão e pode se tornar obrigação. Pode haver pressão social para que idosos e doentes recorram à prática. Quando você autoriza determinado tipo de prática, não tem como dominar os efeitos de propagação”, opina.


José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, endossa o parecer da juíza. Ele cita um conceito fundamental da bioética, o slippery slope (plano inclinado escorregadio, traduzido do inglês). “É quando abrimos exceção sobre determinada questão e vai cada vez mais longe. Na Holanda, por exemplo, já há discussão sobre as pessoas poderem pedir eutanásia porque ‘cumpriram a missão’. E isso está longe da discussão original, de dar um fim a uma vida de sofrimento insuportável em decorrência de uma doença incurável.”

Há seis anos trabalhando em UTIs na Secretaria de Saúde do Distrito Federal, o psicólogo Adriano Facioli é a favor da prática. A legalização, para ele, tem efeito preventivo a suicídios comuns, com morte traumática. “Sem eutanásia as pessoas sofrem. Muitos que poderiam ocupar aquele leito morrem porque tem alguém condenado submetido a uma distanásia. O que o Estado faz é investir no sofrimento das pessoas, uma vez que não existe acesso aos cuidados paliativos nem a legalização da eutanásia”, afirma. Adriano criou há três anos o grupo fechado “Eutanásia Brasil”, no Facebook. Com 804 membros, a página existe para discutir e informar sobre o assunto.
 
Segundo Reinaldo Ayer, coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a terminalidade de vida começou a ser tratada como prioridade em 2004. E os questionamentos vieram justamente de médicos que trabalhavam com pacientes sem recursos terapêuticos. Por isso, para Ayer, a discussão não pode ficar no âmbito da decisão médica.
 
“Quando você vê países que regulamentaram a questão do fim da vida, percebe que as leis foram geradas a partir dos estímulos dos cidadãos, como um direito de cidadania de ter um controle sobre essa situação”, afirma. E completa: “As pessoas devem ter todos os recursos para reverter ou minimizar uma situação de doença. Mas mesmo com tudo isso, ela pode decidir por não continuar. Neste momento, tem que ser dada a ela a possibilidade de escolha”.
 
Fonte: tab.uol.com.br e http://apnendenovaodessa.blogspot.com.br/