Servidora pública revela que o filho, citado em stand-up comedy como ‘baterista de fralda’, teve depressão pelo ocorrido. Dupla é investigada
Arquivo Pessoal
João Henrique e a mãe, Adeline, cobram respeito às pessoas com deficiência
Cesar Sacheto, do R7
A menção feita por dois humoristas a uma banda de rock formada por adolescentes autistas, durante uma apresentação de stand-up comedy, chocou parte da opinião pública e abalou a comunidade das pessoas com deficiência em várias regiões do Brasil e até no exterior. A conduta da dupla de comediantes já é investigada pela Polícia Federal e o Ministério Público de São Paulo, que também encaminhou o caso para a Polícia Civil paulista.
O conteúdo das piadas utilizadas pelos comediantes Abner Henrique e Dihh Lopes atingiu em cheio o brasiliense João Henrique Faro Lopes, de 19 anos, que à época era baterista do grupo Timeout e foi citado durante o show gravado em Campo Grande (MS), em agosto de 2019. “É muito difícil não rir de uma banda que o baterista está de fralda”, disse Abner Henrique, enquanto o outro comediante imitava movimentos de pessoas com deficiências motoras e neurológicas chamados de estereotipias.
A servidora pública Adeline Cecília Castilho Dias, mãe do músico, revelou que a mágoa e a indignação por ter sido alvo das brincadeiras para uma plateia de 500 pessoas – amplificada pelo compartilhamento do vídeo, que alcançou cerca de 1,7 milhão de visualizações no YouTube e já retirado da plataforma digital -, conforme disseram os comediantes em uma nota postada em suas redes sociais, causaram sérios danos ao desenvolvimento do filho, que cursa Letras em uma faculdade do Distrito Federal e é fluente em inglês.
“A gente tentou esconder, mas não tem jeito. Ele está sempre na internet. Viu o vídeo, ficou muito indignado. Ficou nervoso e começou a descontrolar toda a vida aqui dentro [da casa da família]. Não quer mais fazer os trabalhos da faculdade, não quer mais tocar ou estudar inglês. Não quer fazer mais nada. Fica com aquela repetição na cabeça”, contou a servidora pública.
Diante do comportamento do filho, Adeline incentivou João Henrique a gravar um vídeo para contar o impacto que a piada havia causado em sua vida. Seria uma forma de externar o sentimento de angústia que o consumia e fazer um desabafo público, Porém, a postagem precisou ser repetida várias vezes até que pudesse ser publicada.
“Trago esse recado porque, aparentemente, acham que é engraçado fazer piadas com as comunidades ditas inferiores. Resolvi destacar que, no meio dessa comédia deles, fui citado como o menino que toca de fralda. Realmente, acho que eles deveriam pegar o controle remoto e apertar o botão de voltar. Só voltando no passado, entendendo algumas coisas, eles vão ver o quanto trabalhei, me sacrifiquei. O quanto tive que dar duro para chegar onde estou hoje. Acho humilhante o fato de os meus outros amigos serem humilhados daquela forma, porque são pessoas gentis e carinhosas. Ninguém merece ser destratado da forma que fizeram no dito show”, declarou João Henrique.
Reprodução/Instagram @timeoutrockband
Integrantes da Timeout, banda que tocava pop rock nacional e internacional
A servidora lamentou a influência negativa que a exibição da dupla de comediantes causou e a falta de respeito com as famílias de autistas. “Só quem tem essa situação sabe a dificuldade que é chegar com a criança na adolescência e [no estágio] adulto com esse tipo de provações. Eles travam por qualquer coisa diferente do contexto. Entram em depressão. É um retrocesso [em relação ao] que a gente conseguiu até agora. O vídeo foi uma forma que encontrei dele desabafar o que estava sentindo. Estava muito nervoso. Indignado”, completou.
Síndrome rara
Adeline explicou que o filho é portador da Síndrome de Beckwith-Wiedemann, uma condição rara, classificada pelo crescimento excessivo e que provoca muitas deformações no corpo. João Henrique nasceu sem o abdôme e sofre por problemas no funcionamento de alguns órgãos.
O diagnóstico do autismo ocorreu somente quando o garoto estava com 10 anos, após o avanço do tratamento da síndrome principal. A partir de então, os médicos e familiares passaram a notar traços no comportamento da criança que caracterizavam a TEA (Transtorno do Expecto Autista).
A mãe revelou que o adolescente já passou por 13 cirurgias desde o nascimento. Mas, apesar das restrições, diz que João se esforça para ter uma vida produtiva e com liberdade. Nesse contexto, a música e a banda, formada inicialmente como uma alternativa de tratamento comportamental, têm papel importante.
“Ele não escuta, usa óculos, quase não enxerga do olho esquerdo. Mas toca bateria muito bem e fala inglês como se morasse lá. Ele tem capacidade. O vocalista decora textos inteiros de um filme. Cada um tem uma habilidade. O que eles [humoristas] fazem é ‘humor negro’ e que vão continuar com isso. A luta dos pais é por respeito. É muito difícil chegar com eles onde chegaram”, disse.
Música como tratamento
A ideia de formar uma banda com outros adolescentes autistas surgiu em 2017, quando o psiquiatra responsável pelo tratamento de João Henrique indicou o caso a um psicólogo. Por sua vez, o profissional de saúde, que já atendia outros três meninos portadores do TEA, decidiu testar a música como forma de terapia.
“Foi onde surgiu o nome da banda. Ele era o baterista, o Ivan cantava, o João Gabriel também cantava e o Matheus tocava teclado. A guitarra e o baixo eram [tocadas pelos] psicólogos”. Em 2018, entraram novos componentes: João Daniel (vocal), Thiago (guitarra) e Marcelo (baixo).
Adeline lembrou que os garotos começaram a se apresentar no consultório. duranta as sessões. Depois, tocaram em um barzinho, em Guará (DF). Foi quando a banda ganhou força.
“Eles gostaram muito e começaram a tocar. Foram em vários colégios. Tocaram por dois anos seguidos em um festival de motos, em Brasília. Em agosto de 2019, abriram o show do Capital Inicial em um evento”, recordou.
Porém, logo após as apresentações, os psicólogos entenderam que o projeto deveria ser mantido e a Timeout seguiu seu curso. Mas sem João Henrique, que pretendia iniciar uma carreira como músico, assim como outros componentes do grupo. Então, os pais se mobilizaram e nasceu uma nova banda: a Good Time.
Arquivo Pessoal
João Daniel (à esq.), João Henrique, Marcelo e Daniel formam a Good Time
Segundo a mãe de João Henrique, os jovens já tinham várias exibições marcadas em diversos pontos do país, mas a pandemia do novo coronavírus interrompeu os planos dos garotos. Apenas temporariamente.
“É um projeto muito lindo que, pela música, tira os meninos do anonimato. O ultimo evento foi em fevereiro, em Natal. Nós iríamos tocar em Goiânia. Em abril, iríamos tocar na Avenida Paulista. Mas foi tudo adiado por causa do coronavírus. Agora, estamos todos isolados”, concluiu Adeline.
Fonte: noticias.r7.com