Aos seis anos, uma infecção de garganta, que migrou para a medula, fez a jornalista goiana Jéssica Paula, 26 anos, perder os movimentos das pernas. Ela teve que reaprender a fazer atividades cotidianas, como andar e sentar, por exemplo.

Com o passar do tempo, Jéssica foi conseguindo superar as sequelas da doença. Hoje, ela se locomove com ajuda de muletas.

 A jornalista Jéssica Paula em Machu Picchu; de muletas, ela já mochilou por mais de 20 países sozinha

Crédito: Arquivo pessoalA jornalista Jéssica Paula em Machu Picchu; de muletas, ela já mochilou por mais de 20 países sozinha

 

Mas isto não a impediu de cair no mundo. Aos 23 anos, Jéssica viajou sozinha por países em zona de conflito na África. Desde então, ela já conheceu 24 países e percorreu mais de 79.000 km, sempre sozinha.

“Aprendi a adaptar meu corpo às diferentes circunstâncias Nos países mais quentes, até a borracha que sustenta a muleta começou a se desafazer no calor dos asfaltos que cruzam desertos. Ir ao banheiro em muitos lugares também é outro entrave”, conta Jéssica.

 Em 2013, Jéssica fez um mochilão pela Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, países em zonas de conflito na África

Crédito: Arquivo pessoalEm 2013, Jéssica fez um mochilão pela Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, países em zonas de conflito na África

A partir de hoje, Jéssica vai compartilhar suas experiências com os leitores da Catraca Livre. “A ideia não é construir um conteúdo apenas direcionado às pessoas com deficiência. Muito pelo contrário. O objetivo principal é inspirar através dessas experiências e dizer, inclusive que, se eu –com essas condições físicas– faço, elas também podem fazer”, diz.

Confira abaixo o primeiro relato:

os seis anos, tive uma infecção de garganta que migrou e infeccionou a medula. Perdi o movimento das pernas, a força do tronco, parei de andar. Precisei reaprender a sentar, a engatinhar e, finalmente, voltar a caminhar com ajuda de um andador.

Meu primeiro desafio foi conseguir andar em volta do quintal de casa, sem que minha mãe ajudasse. Quando conquistei tal façanha, não imaginava que esses seriam os primeiros metros dos 83.724 km que percorreria pelo mundo.

Quando as pessoas me veem com um mochilão de mais de 70 litros nas costas, me apoiando em um par de muletas, o primeiro olhar é de espanto. A segunda reação é pensar que sou extremamente corajosa. Outros chegam a questionar se não estou com a saúde mental afetada e sempre me dizem sobre o quão difícil deve ser viajar sozinha sendo uma mulher com deficiência física. Devo revelar algo desenganador: Não é.

É mais fácil e mais engrandecedor do que se imagina. Vivo a mesma rotina de qualquer viajante. A diferença? A mochila tem de ser bem pensada e mais leve, e as trilhas talvez peçam mais pausas pelo meio do caminho.

Até o sentimento de pena que ainda está presente na imagem que se tem sobre as pessoas com deficiência se converteu a meu favor. Quando a mochila estava pesada, aparecia alguém oferecendo ajuda. Quando não havia vaga em dormitórios, aparecia alguém disposto a caminhar a meu lado para ajudar na saga de encontrar um hotelzinho disponível. Isso para não dizer da atenção cuidadosa que recebi mesmo quando fui detida ao entrar em uma zona de conflito no Sudão.

Há vezes que me sinto vivendo um rallsobre muletas, como em um dos terminais rodoviários do interior da Etiópia. Vamos ver quem passa primeiro por entre esses dois ônibus, pula três caixas, desvia de uma galinha, sem esbarrar na criança chorando e sem pisar naquela poça de lama.

Na maioria das vezes, não há como planejar trajetos mais acessíveis. Afinal, como prever ou evitar subir os degraus altos e estreitos de Machu Picchu? Qual seria a melhor opção? Alterar o roteiro e procurar destinos acessíveis seria uma resposta plausível.

Mas não poderia permitir que duas pernas deficientes me impedissem. Ora, tenho meus braços para isso. E se não os tivesse, sei que encontraria alternativas. A verdade é que ser uma viajante deficiente requer aprender a usar os recursos disponíveis. Não há porque se queixar, há que buscar soluções. Se não tenho força nas pernas, sem problemas.

Caminho com a força dos braços. Se não consigo carregar mala de rodinhas, sem problemas. Coloco uma mochila nas costas. Se a mochila está muito pesada, sem problemas. Abro mão de variedade de roupas na permuta por um mochilão mais leve. Se há uma escada enorme no meio do caminho, tenho duas opções: ou eu me lamento por não poder subir essa escada, ou eu aprendo a subi-la.

Sempre ouvi a palavra muleta como sinônimo de acomodação, de desculpa. No meu caso, uso elas para subir pedras, morros e escadas rolantes. Apagar as luzes, fechar portas e cruzar desertos. Para passar por barreiras policiais em meio a uma zona de conflito no Sudão, ou para conseguir carona no Marrocos. Para comer na Mauritânia, acompanhar a vida de ciganos romenos na Espanha, ou conquistar uma aula de mergulho no nordeste brasileiro.

Confesso que comecei a viajar para fugir do bullying, de preconceito, e para não ser “apenas mais uma deficiente”. Na arte de se colocar em movimento pelo mundo, descobri que não é preciso quebrar suas muletas, é preciso aprender a usá-las. É entender que nossas muletas –dificuldades, desculpas, medos, problemas – também nos levam a lugares incríveis.

Fonte: Jovem com deficiência física conta como é mochilar pelo mundo