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O escocês Jim Elder-Woodward passou um ano inteiro – todo o período da pandemia na Grã-Bretanha – confinado ao andar superior de seu sobrado.

Não foi uma escolha pessoal. Não foi porque o homem de 73 anos quis ficar ali, renunciando ao sol no rosto, tendo só a vista da janela para o pequeno lago atrás do seu jardim, em uma cidade nos arredores de Glasgow, na Escócia. Isso foi porque sua cadeira elevatória quebrou no final de março de 2020, dias antes de o Reino Unido entrar em um lockdown nacional.

Ex-funcionário do serviço social da Câmara Municipal de Glasgow, Elder-Woodward nasceu com paralisia cerebral e precisa de cuidados 24 horas por dia, pois não pode andar e usa uma cadeira de rodas. A cadeira elevatória o auxilia há 30 anos, mas o conselho municipal, responsável por esse tipo de serviço para os cidadãos, se recusou a pagar por uma substituição, dizendo que sua “cama poderia ser movida para a sala de estar, no térreo”, contou. “Só que meu banheiro e meu escritório ficam no andar de cima”, acrescentou.

Para considerar a concessão de uma nova cadeira, o conselho teve que fazer uma avaliação de suas necessidades, o que só pode acontecer após o lockdown, disse Elder-Woodward.

Os servidores do conselho local finalmente visitaram a casa meses depois do incidente e concordaram  em cobrir alguns dos custos da nova cadeira, já que a antiga foi considerada imprópria para uso. Mas a instalação de um novo aparato em sua casa do século 19 exigiu desenhos arquitetônicos e estruturais e a aprovação do órgão local de construção, o que levou mais meses. Por causa da soma com outros atrasos alimentados pela pandemia, como restrições, home office e distanciamento social, a obra só foi feita na semana passada, um ano depois da falha.

Durante um ano, Elder-Woodward foi incapaz de abraçar sua noiva, que também usa cadeira de rodas. “Ela mora em seu próprio apartamento e quando vem aqui, eles se comunicam com ele falando do alto da escada e ela embaixo”, disse Jeanette Young, uma de suas cuidadoras. Carregá-lo para cima e para baixo pelas escadas não é uma opção porque ele é “muito pesado”, acrescentou a cuidadora, com uma risada.

Apuros para PCDs

A provação de Elder-Woodward é apenas um dos muitos problemas que as pessoas com deficiência tiveram de enfrentar durante a pandemia. Infelizmente, os especialistas dizem que a situação não os surpreende.

“A falta de preparação para o impacto da pandemia nas pessoas com deficiência é muito familiar”, escrevem especialistas em deficiência, incluindo Thomas Shakespeare, professor de pesquisa sobre deficiência na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres (LSHTM), em um texto publicado na revista “Lancet” no início deste mês.

“Ignoradas na pior das hipóteses, e deixadas em segundo plano na melhor das hipóteses”, as pessoas com deficiência experimentaram uma ameaça tripla durante a pandemia, segundo os autores: um risco maior de consequências graves ou fatais da doença; maior possibilidade de redução do acesso a cuidados de saúde de rotina e reabilitação, embora as pessoas com deficiência já tenham, em média, uma saúde mais delicada; e impactos sociais prejudiciais por causa dos esforços para mitigar a pandemia.

Os especialistas também destacam um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) que identificou as pessoas com deficiência como sendo geralmente mais propensas a serem mais velhas, mais pobres, terem comorbidades e serem mulheres – dos quais os três primeiros fatores estão ligados a um risco maior de doença grave de Covid-19 ou morte.

De acordo com o Escritório de Estatísticas Nacionais do Reino Unido (ONS) o risco de morte envolvendo a Covid-19 na Inglaterra entre 24 de janeiro e 30 de novembro de 2020 foi até 3,1 vezes maior para homens com deficiência e até 3,5 vezes maior para mulheres com deficiência do que para homens e mulheres sem deficiência.

A análise do ONS também mostrou que, na primeira onda da pandemia, entre março e novembro de 2020, as pessoas com deficiência totalizaram quase 60% de todas as mortes envolvendo Covid-19, apesar de representar apenas 17,2% da população na Inglaterra.

Há razões para suspeitar que as pessoas com deficiência terão maior probabilidade de morrer na pandemia, disse Hannah Kuper, codiretora do Centro Internacional de Evidências em Deficiências da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “Elas têm mais probabilidade de viver na privação, serem mais velhas, estar acima do peso e morar com cuidadores ou em lares onde é difícil se distanciar socialmente”, detalhou.

Um relatório divulgado pela agência de saúde pública da Inglaterra revelou que o vírus foi responsável por mais da metade de todas as mortes de adultos com dificuldades de aprendizagem em lares de idosos entre abril e maio de 2020. Mas levou quase um ano para que esse impacto da pandemia fosse reconhecido.

A campanha de vacinação do Reino Unido começou em dezembro e teve como alvo inicial quatro grupos prioritários, incluindo pessoas com mais de 70 anos e qualquer pessoa que seja clinicamente extremamente vulnerável. Mas foi apenas em fevereiro que o Comitê Conjunto de Vacinação e Imunização (JCVI) expandiu seus grupos prioritários para incluir pessoas com dificuldades de aprendizagem. Isso ocorreu após o lançamento de um estudo mostrando que pessoas com dificuldades de aprendizagem tinham até cinco vezes mais chances de serem hospitalizadas com a doença e até oito vezes mais chances de morrer em comparação com a população em geral, de acordo com Kuper, que liderou a pesquisa.

O problema é agravado por várias falhas durante a pandemia. No final do ano passado, por exemplo, o regulador dos serviços de saúde e assistência social da Inglaterra, a Care Quality Commission (CQC), achou que avisos de não usar reanimação cardiopulmonar (conhecido pelas siglas DNR e DNACPR) foram colocados erroneamente em alguns residentes de lares com deficiência de aprendizagem no início da pandemia, potencialmente causando mortes evitáveis.

Os avisos são colocados em pessoas muito frágeis para receber manobras de ressuscitação, mas a organização Mencap disse que mesmo pessoas saudáveis mas com esse tipo de deficiência foram marcadas pelos avisos em seus leitos. Em um relatório de acompanhamento, o CQC descobriu que mais de 500 pessoas foram submetidas a ordens de “não ressuscitar” sem seu consentimento ou o dos seus cuidadores.

Impacto maior

Mesmo para pessoas com deficiência que conseguiram evitar a infecção do coronavírus no ano passado, como o Elder-Woodward, a pandemia trouxe outras lutas, destacadas em um estudo lançado no mês passado em pré-impressão pelo professor Shakespeare e sua equipe no LSHTM.

Os pesquisadores exploraram as experiências vividas por pessoas com deficiência durante a primeira onda da pandemia no Reino Unido. Durante as entrevistas, pessoas cegas falaram sobre o aumento do estigma que enfrentavam porque sua deficiência significava que tinham problemas para manter distância social. “Os cães-guia não entendem o distanciamento social”, disse Shakespeare à CNN, acrescentando que um cego que ele entrevistou gritou quando seu cão ignorou a fila e entrou direto em uma agência dos correios.

Os cegos também falaram sobre os desafios de viver sem contato físico, como toques e abraços. ‘Como uma pessoa cega, estou perdendo tudo por causa do distanciamento social”, disse um participante do estudo.

Pessoas surdas ou com deficiência auditiva contaram que as máscaras tornaram mais difícil para elas entender o que os outros estavam dizendo, já que a leitura das expressões faciais é parte da comunicação. Aqueles que dependem de entregas de comida de repente se viram competindo com dezenas de milhares de pessoas sem deficiência que evitavam as lojas e faziam pedidos de comida online.

Restrições pandêmicas também viram o fechamento de parte do sistema de assistência social, fazendo com que as pessoas com deficiência dependessem cada vez mais de suas famílias e de outros cuidadores informais. Instalações e eventos, como centros-dia e projetos de arte, também foram cancelados ou adiados. Elder-Woodward, que participava de iniciativas assim, disse que o único apoio adicional oferecido na pandemia por sua autoridade local foi uma visita de 15 minutos para ver se ele estava confortável em sua cadeira de rodas.

“O resultado disso é que eles não têm nenhum contato com outras pessoas e acabam assistindo televisão o dia todo”, afirmou o professor Shakespeare.

Pais e responsáveis por jovens falaram de como seus filhos com deficiência perderam até um ano de educação em terapia e socialização. “Crianças com paralisia cerebral precisam de terapia de linguagem, fisioterapia ou perdem suas janelas críticas [para se desenvolver]”, disse Shakespeare, acrescentando que adultos mais velhos com diagnóstico de demência, que ficaram trancados devido a restrições de pandemia, estão perdendo habilidades e sofrendo de aumento da perda de memória.

“Isso tudo mostra como a pandemia tem um impacto além do simples risco de adoecer e morrer”, resumiu. “Existem muitas outras maneiras pelas quais as pessoas com deficiência, por serem mais vulneráveis ou em maior risco, são afetadas pela pandemia”.

Falha esmagadora

Um relatório global feito pelo grupo de direitos humanos International Disability Alliance, que incluiu entrevistados de 134 países, concluiu que os formuladores de políticas públicas “fracassaram totalmente em tomar medidas suficientes para proteger os direitos das pessoas com deficiência em suas respostas à pandemia”.

As pessoas entrevistadas disseram que cuidados de saúde emergenciais foram negados a adultos e idosos em ambientes institucionais, enquanto outras disseram que foram abandonadas por seus governos e presos em casa sem meios de acesso a alimentos, remédios ou outros suprimentos básicos.

Uganda, Nigéria, Quênia, Bangladesh, Índia, Tanzânia e Peru estão entre os países com a maior porcentagem de entrevistados sem acesso a alimentos. Mas isso também ocorreu em vários países de alta renda, com mais de 25% dos entrevistados nos EUA, Canadá, França e Bélgica dizendo que tinham dificuldade para comer. Em alguns países africanos, as pessoas falaram que foram assediadas ou espancadas por funcionários por violarem o toque de recolher ou restrições ao tentarem encontrar comida, escreve o relatório.

Nos EUA, um grupo de especialistas argumentou em uma carta ao “American Journal of Psychiatry”  que a pandemia afetava desproporcionalmente pessoas com deficiências intelectuais e de desenvolvimento. Muitas perderam o apoio crítico de que precisavam e foram incapazes de defender a si mesmas.

De acordo com a pesquisadora Kuper, a única evidência disponível que ela conseguiu descobrir sobre como a Covid-19 afeta desproporcionalmente pessoas com deficiência vem do Reino Unido. Citando dados da ONS, um consórcio de grupos internacionais de direitos das pessoas com deficiência apelou agora em março às agências das Nações Unidas e aos governos nacionais que garantam que as pessoas com deficiência sejam reconhecidas como um grupo prioritário nos planos de vacinação.

Perto da liberdade

Não poder sair por um ano trouxe muito tempo ocioso para Elder-Woodward. Ele preenche seus dias estudando para um mestrado em filosofia na Universidade Glasgow Caledonian, que ele descreve como um “hobby para manter meu cérebro ativo”. A internet o fez companhia e, como presidente de várias instituições de caridade para pessoas com deficiência, participar de uma reunião da Zoom virou uma ocorrência diária.

O escocês também é responsável por seu próprio cuidado social. Ele paga a uma equipe de cinco assistentes pessoais em meio período até £ 8.000 (cerca de R$ 63 mil) por mês com a ajuda de fundos da autoridade local, do governo e de suas economias. Eles são uma parte vital de sua vida, executando as tarefas cotidianas que o homem não consegue fazer em uma cadeira de rodas, incluindo trazer comida da cozinha do andar de baixo.

Mas dois de seus assistentes tiveram que se isolar no primeiro lockdown e outro pediu demissão, deixando apenas dois cuidadores disponíveis para cobrir a semana inteira. Isso significava que ele tinha períodos de seis horas sem ajuda ou companhia, e uma vez se viu na posição desconfortável de “ficar sentado sobre os meus testículos” por horas, já que não foi capaz de reajustar seu corpo após uma pausa no banheiro.

“Minha vida é completamente diferente. Eu costumava sair para comer, ir ao cinema, ir ao teatro e ver peças”, relatou Elder-Woodward à CNN. “Agora tudo que posso fazer é mover-se entre a minha cama e o escritório”. Ele admite que tem mais sorte do que a maioria, tendo cobertura 24 horas, mas que tem sido uma batalha constante para conseguir preservar sua autonomia. “Tudo é uma batalha. Nada vem de graça”.

Fonte: www.cnnbrasil.com.br

Origem: Pessoas com deficiência terão maior probabilidade de morrer na pandemia, afirma especialista em Londres