Luiza Souto – O Globo

 

Gislene Almeida, que abriu mão do direito de aborto, mostra foto da filha que viveu pouco mais de um mês
Gislene Almeida, que abriu mão do direito de aborto, mostra foto da filha que viveu pouco mais de um mês Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — Mesmo nos dias mais quentes em São Paulo, a consultora de vendas Gislene Almeida de Faria, de 40 anos, coloca sempre um casaco na mochila da filha Julia, de 5, antes de sair. Diz ser uma mãe do tipo superprotetora. Sem tirar o olho da menina que rodopia sem parar pelo apartamento da família, na Zona Norte, justifica ser um trauma de hospital. Há seis anos, Gislene ganhou na Justiça o direito de interromper uma gravidez de quase oito meses porque a criança apresentava Síndrome de Edwards, doença grave que reduz drasticamente a expectativa de vida do bebê.
 
Juntos há 15 anos, Gislene e o marido, o gerente de TI Heber Antunes de Faria, de 38, fizeram tratamento para engravidar por quase dois anos. Quando ela já estava no sexto mês de gestação, veio o diagnóstico da síndrome de Edwards, doença que nos últimos oito anos já fez com que a justiça autorizasse a interrupção da gravidez de 29 mulheres. Apenas oito não foram aceitas por magistrados nesse período. No caso de Gislene, ela teve autorização para um parto induzido:
 
Quando conseguimos a autorização, eu estava entrando no oitavo mês, e teria que fazer uma indução do parto, mas na hora desisti e decidimos levar adiante. Fiquei feliz por não ter tirado sua vida. Cheguei a procurar três padres para ter certeza de que não estava cometendo um pecado. Eu me sentia uma assassina. Apesar do sofrimento, vi seu rostinho, segurei sua mão, dei colo — emociona-se Gislene, mostrando fotos da menina. Ela ficou 42 dias internada antes de falecer.
 
DISCUSSÃO NO STF
O tema sobre o aborto em caso do diagnóstico da síndrome tem chamado a atenção de especialistas em meio a discussão no Supremo tribunal Federal (STF) para autorizar o aborto em caso de microcefalia provocada pelo vírus zika. Juristas entendem que, em caso de doenças severas, quem tem que decidir é a gestante. O assunto tem criado polêmica entre especialistas, na área acadêmica e entre religiosos.
 
São Paulo foi o estado onde mais houve pedidos para o aborto em casos de Síndrome de Edwards: 18 no total. Todas essas mulheres entraram na Justiça pedindo a interrupção da gravidez já que o aborto só é autorizado em casos de violência sexual, anencefalia e o risco de vida para a mãe.
 
O diagnóstico com a doença levou uma vendedora autônoma, de 36 anos, que prefere não se identificar, a reunir todos os laudos para a Justiça permitir que ela interrompesse a gravidez de seu segundo filho. “Te aconselho a parar por aqui mesmo”, disse ela, repetindo as palavras do médico. Ela então seguiu a orientação e seu pedido foi aceito em 2013. Como estava no oitavo mês da gestação, fez também uma indução do parto. O bebê não resistiu, e ela optou por não ver seu rosto:
 
Penso muito no meu filho e me arrependo de ter feito o aborto. Mas falo por mim. Todos os casos têm seus desafios — diz ela, que tem um adolescente de 13 anos.
 
Segundo a medicina, a síndrome provoca alteração nos cromossomos, o que pode resultar em até 150 tipos de má formação em órgãos e membros. Pesquisas apontam que somente 10% das crianças que nascem com ela sobrevivem a mais de um ano.
 
A médica geneticista Chong AE Kim, responsável pela Unidade de Genética do Instituto da Criança, em São Paulo, acompanhou estudo realizado com 24 pessoas com a Síndrome de Edwards, ao longo de 20 anos. Segundo ela, apenas uma chegou aos 11 anos.
 
Metade não sobreviveu a mais de um mês. A gravidade é altíssima, e não tem cura. Mesmo assim, não é correto falar que é incompatível com a vida. As crianças conseguem viver, ainda que por pouco tempo — explica Chong.
 
APOIO A MÃES
Também preferindo o anonimato, uma esteticista paulistana de 40 anos disse que procurou “mais de 30 especialistas”, e “todos falaram que a doença era incompatível com a vida”.
 
Como sofreu um aborto espontâneo do primeiro filho, também por patologia rara, ela recorreu à Justiça para não levar a segunda gravidez adiante. O parto também foi induzido, porque ela estava completando sete meses de gestação, e o bebê não resistiu à cesariana. Hoje ela apoia mães que pleiteiam o direito de escolher:
 
Meu bebê não tinha o cerebelo, nem coluna, além de problemas em todos os órgãos. O caso dele era muito severo. A pior coisa que pode acontecer para uma mãe é saber que o filho está em contagem regressiva para a morte.
 
STF VAI DECIDIR SOBRE ABORTO EM CASOS DE ZIKA
O Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir este ano se autoriza o aborto em casos de zika, vírus que provoca a microcefalia. No fim do ano passado, ministros da Primeira Turma da Corte entenderam, durante julgamento, não ser crime a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês da gestação. Não há ainda, na esfera do STF, discussão sobre autorização ou não do aborto em caso da Síndrome de Edwards.
 
A decisão do Supremo pode abrir uma brecha para a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Enquanto não há definição sobre o tema, magistrados se dividem entre o dever do Estado e o direito da mulher.
 
O desembargador do Rio de Janeiro Siro Darlan não autorizou um pedido de aborto por Síndrome de Edwards que chegou a ele em 2015. Ao GLOBO, Darlan justificou ter se preocupado com a saúde da mãe, que já estava no sétimo mês de gravidez. Ele afirma, no entanto, que teria tomado outra decisão “se a solicitação tivesse chegado mais cedo”.
 
Sou católico praticante, e portanto sou contra o aborto. Mas entendo que o direito é à vida com dignidade. Se já há um diagnóstico médico atestando que essa criança não terá uma vida plena, tem que se ouvir a mãe em primeiro lugar. Já deferi aborto de meninas com problemas mentais, vítimas de estupro — lembra ele.
 
O juiz Thiago Baldani De Filippo, de Assis, a 400 quilômetros de São Paulo, concorda, e diz que o Estado não pode exigir que uma mãe mantenha a gravidez em casos como esse. Em novembro do ano passado ele autorizou o aborto a uma mulher após diagnóstico da Síndrome de Edwards.
 
O direito à vida deve prevalecer, mas nesse caso devemos ceder à liberdade de escolha da gestante. É louvável uma mulher que opta por levar adiante uma gravidez como essa, mas o Estado não deve exigir isso da pessoa
 
Os advogados André Reinaldo de Faria Pereira e Percília Marques Dutra Maciel representaram, ano passado, uma mãe que pleiteava o direito ao aborto após diagnóstico da Síndrome de Edwards. A Justiça não concedeu, e a criança faleceu após o nascimento.
 
Podemos afirmar com convicção que, apesar de termos o nosso pedido indeferido, tivemos uma experiência única defendendo um caso como este e aprendemos a seguinte lição: no mundo jurídico muitas vezes é necessário deixar a razão (legalidade) de lado e agir com compaixão para com o próximo.
 
O DESAFIO DE QUEM LEVOU A GRAVIDEZ ADIANTE
Mulheres que não entraram na Justiça mesmo após o diagnóstico da Síndrome de Edwards falam dos desafios de cuidar de uma criança especial e incentivam mães a seguirem adiante com a gestação. O filho da carioca Priscilla Sant’Anna, de 36 anos, está com um ano e sete meses, e, dia desses, lembra ela, foi à praia com a família “e se divertiu muito”.
 
Priscilla, que hoje mora em São Paulo, conta que apenas soube do diagnóstico da síndrome quando estava no sétimo mês de gestação. Ela também relata pressão de especialistas para interromper a gravidez, mas afirma ser contra o aborto em qualquer ocasião.
 
Quando o menino nasceu, pesando apenas 1,6 quilo, praticamente viveu no hospital, onde ele ficou internado por 188 dias. Hoje, ela conta sua experiência num blog. E garante: vale a pena lutar.
 
Os médicos não passam que há sobreviventes. Fazem é uma pressão psicológica muito grande. O que fiz foi estudar, procurar grupos de mães que têm filhos com a síndrome. E descobri que tem até adulto com ela. Então, levei adiante e hoje faço o impossível para o João ter o melhor da vida. Sou contra todo tipo de aborto. É uma vida com muitas limitações, mas gratificante — relata ela, para frisar:
 
Sei que há casos mais graves, então o que não faço é julgar quem toma outra decisão.
 
A goiana Joselle Loredo Rabelo, de 43, já era mãe de duas meninas, quando engravidou de Clara, hoje com um ano e sete meses de idade. O diagnóstico da doença veio aos cinco meses de gestação, mas Joselle lembra que nem teve dúvidas em seguir com os planos de aumentar a família.
 
Tudo que você lê e falam sobre a doença é terrível. Não é fácil. Tem que amar muito — afirma ela, que é coordenadora comercial numa faculdade.
 
A menina ficou cinco meses internada no hospital. Precisava ganhar peso e só respirava e se alimentava com auxílio de aparelhos. Hoje é a alegria da casa e exemplo de vida para outras mães. Joselle também conta sua experiência na internet e, segundo ela, auxilia outras mães a passarem pelo desafio de cuidar de uma criança especial.
 
O tempo todo nos falam que podemos perder nossos filhos, mas eu entendo que posso perder qualquer pessoa, a qualquer hora. A gente não sabe o dia de amanhã. Mas também não julgo quem toma outra decisão. Compreendi que as coisas acontecem como tem que ser. Minha filha é esperta, e está em casa, comigo. Não é fácil, mas aos poucos vamos ganhando respeito e amor.