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Pelas pistas de skate do Brasil, não para de crescer o número de meninos e meninas que nasceram para surfar no asfalto. O equilíbrio e a coragem para fazer as manobras mais tensas é visível enquanto vão costurando seus caminhos no half pipe, no bowl ou na rua mesmo, onde brota a alma do skatista. Um shape com quatro rodinhas debaixo dos pés faz a galera voar, mas você já deu conta de que existem também os paraskatistas? Com alguma deficiência presente em suas vidas, paratletas como Ruan Felipe provam que super-heróis não são só uma teoria.
 
Depois de ter uma gripe e tomar uma injeção de Dipirona misturada com Plasil Ruan teve uma gravíssima reação alérgica, quando tinha apenas 3 anos de idade. Ficando entre a vida e a morte, teve mais uma chance para mostrar ao mundo a que veio. Com parte dos braços necrosados e pernas amputadas por conta do mesmo problema, ele renasceu.
 
Agora, aos 22 anos ele é um paraskatista de Ribeirão Preto (SP), que conquistou sem apoio da família o patrocínio de marcas e chegou até campeonatos. O skate apareceu na sua vida aos 8 anos porque a avó queria que ele se locomovesse melhor pela casa. Aquela foi a primeira paixão do Ruan, que ficou mais independente com a ajuda do skate. “Sou 100% dependente do skate, é all day. Eu acho que todo dia eu pego pra andar mesmo, sem ser só pra me locomover”, me contou.
 
E a rua é onde ele mais gosta de estar, seja para passar seu tempo livre ou para aprender alguma manobra nova, como o nollie one foot, que é quando a pessoa se equilibra somente sob duas rodinhas do skate no chão. Melhor do que eu escrevendo, só uma foto pra comprovar mesmo. A cena aparece no minidocumentário Ilimitado, que conta a história do Ruan:
 
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O primeiro campeonato ele não se recorda muito bem quando foi, mas o friozinho na barriga…esse foi inesquecível. “Me lembro bem da sensação, porque eu meio que não queria e os meus amigos me inscreveram escondido. Só fui ver na hora de correr o campeonato! Foi bem assustador, mas foi dahora. Isso me deu um empurrão como se fosse de cima de um prédio e eu curti!”. É dessa adrenalina toda que se alimenta um skatista.
 
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Assim como ele, o paulistano Vinícios Sardi, de 20 anos, também se animou bastante após a primeira competição de sua vida. Nascido com má formação congênita, que atinge a formação das pernas, ele começou a andar de skate com 16 anos por influência do paraskatista Ítalo Romano, um dos principais atletas da categoria. “Ví o Ítalo na televisão e pensei, ‘pô, se ele pode, porque eu não posso também?’. Aí desde esse dia eu comecei a tentar e estou aqui até hoje”, disse ele durante a entrevista. Hoje a paixão é tanta que ele anda de skate cinco vezes por semana e também pratica natação, outro de seus hobbies.
 
O incentivo ao esporte é tão importante para estes meninos (e meninas que também se animarem com a ideia), que mesmo um pequeno evento de bairro já consegue dar o impulso necessário para que eles se profissionalizem e alcancem novos horizontes. “Minha primeira competição foi bacana, num campeonato na pista perto de casa, com meus amigos e todo o pessoal que sempre me viu andar de skate. A primeira competição foi algo que me impulsionou. Se eu estava participando dessa, poderia participar de outras. Abriu as portas totalmente pra eu entrar em outras. Você sente aquela vibe das pessoas torcendo por você, o acerto das manobras…muito bom.”
 
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Diferente de Ruan, Vini tem apoio da família. Morando com a avó e a tia Adriana, ela me contou que de início veio o medo de que ele se machucasse. “Ficamos um pouco preocupados, é um esporte bem radical, né. Depois a gente viu que o skate trouxe pra ele uma superação, em tudo. Ficamos bem orgulhosos e vimos que a partir daí o Vinícios começou a se aceitar mais e mostrar pra gente mesmo. A cada dia ele ensina a gente. É um exemplo de vida.”
 
Um ponto ressaltado pela tia é que atletas como o sobrinho mostram que nada é impossível.“Quando ele chega na pista, tira as próteses pra andar de skate, as pessoas olham com curiosidade e admiram. Poxa, a gente tem as pernas e acaba reclamando, colocando obstáculos. Vemos que neles não existe isso. Eles superam tudo”.
 
Prova disso é também o skatista profissional pernambucado Og de Souza, que fez história no esporte e foi um dos pioneiros a andar de skate utilizando as mãos, em 1988. Vítima de poliomielite na infância, atualmente é um dos mais respeitados do mundo, chegando a participar do campeonato mundial de skate na Alemanha, onde levou o segundo lugar e o prêmio de melhor manobra.
 
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Assim como Og, João Henrique de Oliveira, de São Bernardo do Campo (SP) teve polio e já anda de skate há quase 10 anos. Quando o conheci, numa competição em 2011, me ecoa a frase na cabeça até hoje: “Skate pra mim é mais do que um vício, é superação”. Hoje ele continua competindo e atualmente está no Rio de Janeiro para acompanhar as Paralimpíadas.
 
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Não posso deixar de citar também o pequeno e poderoso Davizinho, ou David Teixeira, carioca que nasceu com síndrome da banda amniótica, resultando na má formação dos braços e das pernas. Aos 10 anos de idade, ele anda de skate, participa de competições e também surfa, chegando a pegar onda junto com o campeão mundial Gabriel Medina. Sorte do Medina, né!
 
Quem também surpreende no esporte diretamente do Rio de Janeiro são os paratletas Rafael Alenteiro e Phelipe Palmas, que tem Síndrome de Down e compete junto com essa turma toda. Além deles, o Luan Rodrigo, de São Sebastião (SP), apareceu todo bonitão andando de skate ao lado de Og numa matéria da ESPN em 2009, mas não consegui localizá-lo para essa matéria.
 
Os desafios diários
 
Falando em superação, eis que surge um outro tema: as próteses. As pernas mecânicas são um tanto complicadas para quem quer andar de skate por conta dos movimentos que o esporte propõe, tornando o processo dolorido e de difícil adaptação. “Eu usei um bom tempo, depois fiquei mais um bom tempo sem usar. Com apoio do pessoal da fisioterapia, estamos avaliando pra eu voltar a usar. Só que é meio difícil, me incomoda porque não estou acostumado, mas a gente vai tentar”, explicou Ruan sobre sua experiência. Por outro lado, ajudam em outras tarefas cotidianas já que facilitam a locomoção. Então, é utilizada para tudo, menos para o esporte e tudo bem com isso.
 
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Conversando com o mineríssimo de sotaque puxado Shierre Ilário, que é de Poços de Caldas (MG), me dei conta de mais uma história inspiradora. Diferente dos demais entrevistados, dos 9 aos 29 anos ele era um skatista que estava indo para a categoria Amador. Com a descoberta de um tumor maligno no joelho, tudo mudou. A perna foi amputada para que o câncer não se espalhasse a outras áreas do corpo e então ficou cinco anos sem o carrinho nos pés. “Quando perdi a minha perna e já andava de skate, no começo achava que não ia dar mais. Conheci o Og de Souza e o Ítalo, mas achava que não ia conseguir fazer o que eles faziam. Então fiquei um tempo meio pra baixo, meio depressivo.”
 
Para se tornar o paraskatista que é hoje, teve o maior incentivo de sua vida. “Pai, por que você não volta a andar de skate, pra andar junto comigo?”, disse a filha, que ficou em terceiro lugar no primeiro campeonato de sua vida e trouxe novos rumos para Shierre, na época, com 35 anos de idade. “Com os meus filhos crescendo, um colega me chamou pra ajudá-lo num campeonato e eu meio que não queria ir ver os caras andando de skate e eu passando vontade. Mas nisso minha filha foi, curtiu o campeonato e quis andar de skate. Aí peguei o skate desse meu colega e voltei a andar. Não tive muita motivação, mas pela minha filha mesmo, eu voltei.”
 
Passado o período nebuloso, já são quatro anos da volta ao skate e competições. Ainda assim, existem outros problemas a serem superados, muito mais por parte da sociedade do que dele.“Hoje em dia vemos que a deficiência tem visibilidade, está mudando o preconceito. Mas ainda rola, tanto é que não trabalho e quando vou em entrevista, explico que uso perna mecânica e acham que não vou aguentar trabalhar”, queixou-se. Na pista, também existem alguns “fominhas” que precisam tomar jeito. “Na pista de skate às vezes rola uma falta de respeito com o paratleta. Às vezes você está esperando no obstáculo pra fazer a manobra, mas tem gente que entra na nossa frente direto, achando que estamos lá pra atrapalhar. O bom é que a grande maioria apoia a gente, fala que somos exemplo”.
 
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A acessibilidade, como sempre, é um grande problema para pessoas com deficiência e consequentemente afeta o paraskate. O Brasil tem um crescimento gigante de skatistas, mas as pistas não acompanham os números. Há poucas, com infraestrutura escassa ou isenta para paratletas, e manutenção precária. “Tem muita pista sem manutenção, que é necessário, porque pista de skate tem muito impacto, acaba rachando e tal. Tinha que estar sempre reformando e fazer a molecada nova se interessar pelo esporte, que agora é olímpico. Isso talvez mude nestes quatro anos pra frente”, apontou Vini.
 
Ruan também aponta outra coisa importante para facilitar a vida de pessoas com deficiência: a limpeza das ruas, pra dizer o mínimo. Se a sujeira já incomoda quem anda com os pés no chão, imagina pra quem se locomove de skate utilizando as mãos. “Eu quero mostrar que não preciso de ajuda. Mas sabe um jeito de ajudar? Manter a cidade limpa, sem cuspe no chão, sem vidro, sem o cocô do cachorro, porque eu já acabei encostando em tudo o que você puder imaginar. Eu ando preocupado na rua. É complicado.“
 
Skate como modalidade olímpica e as Paralimpíadas
 
Segundo uma recente pesquisa da Datafolha e da Confederação Brasileira de Skate (CBSk) o skate cresceu como nunca nos últimos seis anos, entre 2009 e 2016. Atualmente o país tem cerca de 8,5 milhões de skatistas, sendo 1,6 milhões de mulheres. Desta fatia, não se sabe ao certo quantos são paraskatistas, mas ainda são poucos os que se arriscam e a modalidade tem pouco apoio – a começar por não ser considerada numa pesquisa do tipo.
 
Este ano, porém, já houve uma conquista histórica: a inclusão no Campeonato Brasileiro de Street Skate Amador. Assim, no dia 19 de março os atletas abriram com chave de ouro a categoria “Paraskate”, voltada para skatistas paraplégicos, amputados, deficientes visuais ou mentais, que foi aberta para quaisquer interessados sem a necessidade de seleção por meio de algum campeonato. Lá estavam Matheus Moreira de Brasília (DF), Ruan Felipe de Ribeirão Preto (SP), Vini Sardi de São Paulo (SP), João Henrique de S. Bernardo do Campo (SP), Felipe Nunes de Curitiba (PR), Davizinho do Rio de Janeiro (RJ) e Toninho de São Vicente (SP).
 
Conversei com o brasiliense Matheus, um cabeludo de apenas 16 anos que teve sua estreia em competições neste dia tão histórico para o esporte nacional. Para ele foi uma “sensação única” estar ali, representando e sendo representado. Sem movimento nas pernas por conta de uma má formação congênita, além de tocar bateria e praticar Stand Up Paddle, anda de skate desde 2010 e também foi influenciado por Ítalo Romano quando o viu descendo a Mega Rampa.
 
Animado para as Paralimpíadas, vai acompanhar os jogos de Basquete em Cadeira de Rodas pela televisão e também aguarda ansiosamente por 2020, quando o skate debuta na Olimpíadas.“Eu acho extremamente importante para a popularização do skate. Acho que assim poderá ser visto com outros olhares, fazendo com que a população não tenha aquele visão de que skatista é vagabundo, maconheiro.”
 
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Shierre aponta que não só quer acompanhar os jogos paralímpicos, como também é parte disso. “Tenho que me envolver mais, aprender mais com quem já está nesse caminho”. E não só quer ver as modalidades pela TV como também ser visto, quem sabe, nas Olimpíadas de Tóquio.“Estou achando legal pra caramba ter essa oportunidade para o skate. Estou rezando, torcendo, para poder ir também. Estou treinando pra isso, vai que eu posso participar. Não podemos nunca desistir de um sonho. Tem que sempre persistir e trabalhar pra isso, né. Vamos ver daqui pra frente!”
 
O Vini também quer garantir uma passagem para 2020 e vê um lado muito positivo nas Paralimpíadas, que é o espelho de esportistas que lutam diariamente pelo o que mais amam fazer. “É uma forma de ver pessoas que estão nas mesmas condições que eu, se superando igual a mim. Então também é uma motivação, pra todo mundo. Eu queria muito participar lá em Tóquio, vamos ver”.
 
Ele também aproveita para cobrar mais apoio para os skatistas. “Acho muito importante o skate ter entrado como modalidade olímpica tanto pra quebrar aquela barreira de skate como coisa de vagabundo, maloqueiro, e tanto para o governo investir mais no esporte, abrir mais portas para atletas que querem se profissionalizar no skate. Porém, eu acredito que o skate não precise das Olimpíadas. É um esporte muito independente, é um estilo de vida, na verdade. Acho que as Olimpíadas precisam mais do skate do que o contrário. Mas eu sou super a favor de incluir”.
 
Quem divide a mesma opinião é o presidente da Federação Paulista de Skate, Roberto Maçaneiro, que aponta sobre a perda da essência dessa ferramenta de contracultura que a alguns anos atrás já tomava novos rumos e formas. “A profissionalização traz um certo receio, porque o skate vem da rua, é um estilo de vida e não só um esporte. Mas entrar nas Olimpíadas vai colaborar muito com o desenvolvimento dos skatistas no Brasil”, me explicou.
 
Maçaneiro também aponta que o paraskate ainda está em construção no país e que as competições organizadas por eles não restringem os atletas. Ou seja, é tudo junto e misturado, o que resulta numa interação bacana entre skatistas iniciantes, amadores e profissionais junto com paraskatistas. As competições inclusive se dividem em categorias, como Biamputado Sentado, Biamputado Ereto, Amputado Sentado, Amputado Ereto, Má Formação Congênita e Síndrome de Down.
 
Ao que tudo indica, o Brasil ainda não está tão munido ou preparado para incentivar estes paratletas ou atletas no geral. O país não está tão preparado para as futuras olimpíadas, mas ainda assim, o pessoal que pratica esportes está, porque se dedica mesmo diante inúmeras dificuldades. Olhando por esse ângulo, é fácil enxergar que para essa galera o céu é só o começo e não o limite.
 
Ruan, Shierre, Vinicios, Matheus, João Henrique, Rafael e Og:
 
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Fontes: Hypeness – ladobmodainclusiva.com.br