José Carlos Morais usa cadeira de rodas há 45 anos

Por Ana Paula Blower

São 70 anos de vida, 45 deles usando cadeira de rodas e 40 dedicados ao magistério. As datas redondas fizeram com que o médico, professor e esportista José Carlos Morais decidisse escrever sua autobiografia. Em “Roda vida” (Jaguatirica), lançado em setembro, o gaúcho traça uma narrativa sobre sua experiência, a atuação pelos direitos das pessoas com deficiência e a paixão pelo tênis — esporte que o levou a uma paralimpíada e a fundar sua escolinha. As páginas mostram também as conquistas pessoais, como os filhos.

— Sempre gostei de escrever, e cobravam que eu contasse a minha trajetória. O diferencial deste livro é que ele reúne 45 anos de história, a vida que deu certo após o acidente — diz Zé Carlos, patologista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participa de uma tarde de autógrafos no próximo sábado no Cidade PcD. 

Em uma reflexão forte, ele diz acreditar que, se soubesse como sua vida se transformaria após o tiro que o atingiu aos 25 anos, nem teria tentado se desviar dele. Era a década de 1970, e Zé Carlos, nascido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, estava no Rio fazendo residência. Depois de uma festa, aguardava um táxi na Avenida Vieira Souto, quando o assalto foi anunciado.

“Um estampido, a sensação de choque, as pernas bambeiam e caio. Vera pergunta: ‘Que houve, Zé?’ ‘Estou paraplégico’, respondo de pronto. É madrugada do dia 3 de dezembro e estamos em 1972. Meu corpo inerte estende-se por uma calçada…”, diz um trecho do livro.

Após ser atendido no Hospital Municipal Miguel Couto, foi encaminhado ao Hospital Federal dos Servidores, onde era residente, e ficou internado por dez meses. O apoio da família, que veio de Pelotas imediatamente, foi primordial. Assim como o dos amigos, que eram também residentes no hospital e estavam ali todos os dias ao seu lado.

Memórias de afeto

Em seguida, mais um longo período na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), onde trabalhou e conheceu outras pessoas que usavam cadeira de rodas, construindo uma união pelos direitos dos cidadãos do Rio que têm deficiência. 

— De manhã, atendia nos quartos como médico. À tarde, já era paciente — conta ele, que fala sobre o movimento por acessibilidade iniciado na instituição com um grupo de pacientes. — A violência urbana trouxe uma nova geração de cadeirantes, com idades entre 20 e 30 anos, com uma visão de mundo diferente, que decidiu se mobilizar. 

Nos anos 1980, uniram suas potências e as propostas saíram da ABBR. O que era antes o “clube de amigos”, tornou-se a Associação dos Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro (ADEFERJ) e passou a reivindicar seus direitos. A instituição não existe mais, e o mesmo grupo fundou o que é hoje o Centro de Vida Independente — voltado não só para a luta por acessibilidade, mas também para a prestação de serviços. Tudo isso fez com que algumas coisas começassem a mudar, aponta ele.

— Hoje, se alguém sofre uma lesão medular e for bem reabilitado, bem atendido do ponto de vista médico, em pouco tempo já pode ter a vida adaptada. O que quis mostrar no livro é que essa história não foi de graça, tem a parte da conquista e da participação de muitas pessoas — afirma Zé Carlos. — Quando a pessoa passa a se reerguer daquela situação, torna-se até mais preparada para a vida do que alguém que não sofreu aquilo.

Para ele, ter objetivos ajuda a conquistá-los. No seu caso, eles foram: ser professor, fazer mestrado, doutorado e uma especialização no exterior. Conseguiu todos:

— Quando as metas são estabelecidas, começamos a brigar por elas. E as conquistas, mesmo que pequenas, são grandiosas.

Folheando “Roda vida”, Zé Carlos dá risada ao relembrar histórias da juventude e se emociona quando o assunto são os filhos. No capítulo dedicado a eles, conta como foi o processo de adoção.

A casa em que ele e a mulher, a historiadora Martha Abreu, viviam, de repente, tornou-se grande demais para os dois. Havia um vazio ali que logo seria preenchido por muito amor com a chegada de Joana, hoje com 21 anos, e Rafael, com 18. 

— Fui pai aos 49 anos da Joana e aos 52 do Rafael. Foi lindo. Mudou a minha vida. É inacreditável. O foco passa a ser os seus filhos. Tudo passa a ser em função deles. 

Morador de Niterói, Zé Carlos tem um currículo extenso: além de médico com especialização na Califórnia e professor, há um largo espaço dedicado às conquistas nos esportes adaptados. 

Apaixonado pelo tênis desde menino, conheceu o basquete em cadeira de rodas na ABBR e chegou a disputar a paralimpíada de 1980. Em 1984, teve sua segunda experiência na competição internacional, como chefe da delegação brasileira. Em 1985, começou sua atuação precursora no tênis em cadeira de rodas. Naquele ano, deparou-se com a modalidade em Stoke-Mandeville, na Inglaterra, o berço do esporte adaptado.

Durante uma breve demonstração do esporte, ele lembra no livro: “Olhava aquilo atônito e maravilhado com a possibilidade de voltar a praticar um esporte que fez parte da minha infância”. Após experimentar algumas raquetadas, lhe perguntaram há quanto tempo praticava a modalidade, tamanha a intimidade que demonstrara. Dali não parou mais: disputou a paralimpíada de 1996, em Atlanta, com o tênis; nove campeonatos mundiais e foi o primeiro do ranking brasileiro por seis vezes consecutivas.

Sua paixão pelo esporte é hoje posta em prática quatro vezes na semana e transmitida, especialmente, aos alunos do Cadeiras na Quadra, escolinha criada por ele em 2009, em Niterói, para atender crianças com deficiência.

— O esporte muda o comportamento, traz alegria. Quero que as crianças tenham as mesmas oportunidades que eu tive — declara ele.

A fundação do projeto e outras memórias que transformaram não só a vida dele como a de muitos ao seu redor, enchem as páginas de “Roda vida”. Escrito em dez meses, o livro alterna fatos jocosos, como ele classifica, com os desafios enfrentados por uma pessoa em cadeira de rodas numa linguagem própria e divertida.

Em alguns dias, conta que acontecia algo como uma catarse, e escrevia por horas a fio, sem se interromper. Sem ponto ou vírgula. Só revisitava o texto no dia seguinte, para pôr os pingos nos “is”.

Prestes a se aposentar — já estabeleceu que será no dia 15 de fevereiro de 2018 —, ele planeja se dedicar à divulgação do livro e a expandir a escolinha de tênis:

— Não gosto da palavra superação. Ela cabe se há um problema e você o supera. Não é o meu caso, não vou voltar a andar. Tive que me adaptar a essa situação e entendi que devia usar o que tinha, braços e cabeça boa, para ser independente.

Fonte: Médico paratleta lança autobiografia em que narra suas conquistas | Tô dentro – O Globo