PL 6159: Retrocesso e descumprimento da Convenção Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Entenda os erros de premissas do projeto de lei

#NãoAoPL6159

Por Flavia Poppe

No dia 3 de dezembro o mundo celebra o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, data estabelecida desde 1992 pela Organização das Nações Unidas – ONU com o objetivo de gerar discussões sobre a situação das pessoas com deficiência, seus direitos e necessidades. Costuma ser uma data festiva em inúmeros países, mas em 2019 o Brasil passou esse dia assustado e perplexo com a possibilidade de retrocesso e descumprimento da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência caso o projeto de lei 6159, encaminhado pelo governo com urgência constitucional, fosse votado.

O PL 6159 reformula a lei de cotas para empregar pessoas com deficiência que pode e deve ser debatido para buscar melhorias, mas não unilateralmente modificado como foi proposto, tampouco com uma rapidez desnecessária poucas vezes vista no Congresso. A Câmara dos Deputados precisaria votar a matéria em 45 dias, caso contrário o projeto tranca a pauta de votações até ser apreciado. Seriam apenas 5 sessões a partir de 28/11, data em que foi encaminhado o requerimento pelo governo.

A perplexidade é ainda maior por conta de três equívocos básicos cometidos pelo Governo, que demonstram desconhecimento e despreparo para dialogar sobre direitos e necessidades das pessoas com deficiência:

 

  1. “Nada sobre nós, sem nós”: é o lema da Convenção Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de 2008. O governo colocou um garrote nessa que é a principal artéria da Convenção. As pessoas com deficiência precisam ser ouvidas e incluídas no debate.

 

  1. Marcha à ré como sociedade: a Lei de Cotas é uma política de inclusão comum em muitos países! O governo encaminhou a sua posição costurada  (porque não houve negociação) simplesmente porque um grupo de empregadores têm dificuldade para implantar na íntegra a “Lei de Cotas”.  Não pesquisou e conheceu argumentos de grandes empresas que são favoráveis a inclusão de pessoas com deficiência e suas razões para, inclusive, ampliar o limite da cota, que varia de acordo com o número total de empregados. IBM, L’Oréal e Sodexo são alguns exemplos, que descrevem seus aprendizados e experiências no relatório publicado pela Organização Internacional do Trabalho.

 

  1. Premissas ultrapassadas: fiquei abismada com as falhas de informação e erros de conceitos e premissas cometidos pelos assessores do governo e que levaram à uma exposição pública totalmente equivocada. Depois de uma leitura atenta da mensagem nº. 575, encaminhada pelo governo para a Câmara dos Deputados, selecionei alguns extratos, destacados em itálico e negrito, e comento suas implicações:

 

  1. “Inicialmente, pode-se dizer que a política de reserva de vagas busca enfrentar as consequências da exclusão social das pessoas com deficiência mais que suas causas.”

 

Podemos interpretar, então, que seria mais “eficiente” (usando a lógica de raciocínio econômico, muitas vezes válido, mas quase sempre insuficiente) promover uma política que mitigasse as causas e não trabalhar com “fato consumado”: pessoas com deficiência. Lembrei da época em que a primeira-dama Collor de Mello pronunciou que acabaria com a mortalidade infantil no Brasil. Mortalidade infantil se reduz ao mínimo aceitável mas, para acabar com ela, precisamos convocar Deus. Do mesmo modo, pessoas nascem com deficiência, pessoas adquirem deficiências e, para não ficar no básico, sociedades englobam todo tipo de pessoa – com ou sem deficiência. Tendo oportunidades, elas se convertem em contribuintes e consumidores sendo, portanto, parte da engrenagem da economia. Pessoas com deficiência não são consequência de nada, são pessoas e ponto final. E, se querem atacar as causas, parece-me mais eficiente (agora sim) acabar com a roubalheira porque tem dinheiro de sobra não só para fomentar o emprego apoiado, mas também as moradias e serviços de apoio para essas pessoas poderem se tornar adultos dignos e independentes.

 

  1. “…. a proposta prevê….. a contribuição para conta única da União cujos recursos serão destinados a ações de habilitação e reabilitação” 

 

Vamos por partes… reabilitação é um trabalho profissional importantíssimo e difícil da área da Saúde, é um valioso recurso para muitos casos de recuperação de incapacidades temporárias ou permanentes do corpo. Mas a ótica da reabilitação de pessoas com deficiências vem sendo substituída, há anos e em todo o mundo, pelo modelo social que trata da remoção de barreiras que excluem pessoas desnecessariamente. Caso clássico são as rampas e elevadores de acesso aos lugares e transportes. Sem eles, a deficiência da pessoa os impede de ser parte. Nesse caso e em muitos outros, não é a reabilitação que permite a pessoa ter a liberdade de ir e vir, é a remoção da barreira. O mesmo acontece nos ambientes de trabalho. Além do que, faz muito tempo que o movimento internacional pelos direitos das pessoas com deficiência abriu mão do modelo biomédico da deficiência (reabilitação) e adotou o modelo social que oferece evidências no âmbito escolar, no esporte, nas artes e no mercado de trabalho. Além do modelo biomédico ser restrito do ponto de vista da aceitação e inclusão social de pessoas que apenas funcionam de forma diferente, costuma ser mais caro. O que é mais importante e, por que não dizer, rentável? Classificar um adulto que não enxerga ou que não escuta ou que interage de forma atípica num Código Internacional de Doenças para ser elegível a algum programa de assistência social e selar seu destino como cidadão improdutivo ou promover sua integração através de opções de emprego, de moradia e de outros tipos de acessibilidade? É melhor, sob a ótica da arrecadação (já que é a linguagem utilizada), criar as melhores condições possíveis para que milhões de pessoas com deficiência possam ser contribuintes e consumidores ou mantê-los assistidos, improdutivos e isolados? Aí está a diferença das políticas econômicas que projetam uma sociedade aberta e livre no longo prazo das políticas mesquinhas que pretendem equilibrar as contas (vital, sem dúvida) sem visão política de sociedade e executadas de forma autoritária.

 

  1. “A Habilitação e Reabilitação Profissional- HRP está na legislação previdenciária desde 1944, citada como “readaptação profissional” ou “reaproveitamento do empregado acidentado”. Tem por objetivo reintegrar o trabalhador ao mercado de trabalho em sua atividade profissional habitual ou em outra atividade compatível com sua nova condição física” 

 

Fica até difícil comentar… o jovem saiu da escola, precisa aprender ofícios ou funções que permitam que ele ingresse no mercado de trabalho e, por outro lado, as empresas precisam se esforçar para rever, criar ou reconhecer que existem trabalhos plausíveis para pessoas com habilidades específicas. Esse é o desafio atual. Então o governo propõe um “Programa de Habilitação e Reabilitação Profissional” para recuperar a deficiência da pessoa???? Propõe “consertar” essa pessoa para que ela possa concorrer livremente para os postos de trabalho pensados e organizados de forma ultrapassada? Até achei legal a ideia de envolver o SENAI como órgão “habilitador”, mas quem garante que o dinheiro que as empresas poderão pagar para um fundo do governo ao invés da obrigação de contratar vai realmente chegar ao seu destino? O dinheiro vai ser carimbado? Eu tenho memória muito recente sobre o destino da CPMF que era para a Saúde, lembram? O dinheiro foi sendo desviado, desviado, desviado até não sobrar nada.

 

  1. “Para reforçar as diretrizes contidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência, também foi alterado o art. 93 da Lei no 8.213, fazendo com que a obrigação de contratação de pessoas identificadas com deficiência grave, nos termos do §1o, art. 2o da Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015 será considerada em dobro para fins de verificação do cumprimento da reserva de cargos”. 

 

Quer dizer que uma vaga para pessoa com deficiência grave (suponho que definido pelos habilitadores e reabilitadores) vale por duas? Me lembra a sugestão de algumas companhias aéreas para que pessoas obesas comprassem, isso mesmo comprar/pagar, duas poltronas ao invés de uma. Quem mandou ser obeso? Paga duas poltronas! Então, quem mandou ter deficiência grave?? E ainda fica a pergunta, quem vai decidir sobre o nível de gravidade da deficiência se o Código Internacional de Doenças (ainda utilizado neste país) só permite enquadrar as pessoas em um diagnóstico médico? E mais ainda, todo esse trabalho será feito por instituições do governo quando a tendência vem sendo diminuir o tamanho do Estado?

 

  1. “Também há possibilidade de ganhos de arrecadação decorrentes da possibilidade de cumprimento da cota por meio de recolhimento ao Programa de Habilitação e Reabilitação Física e Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes de Trabalho que pode chegar, por exemplo, ao patamar de R$ 2,4 bilhões caso responda por 25% das cotas.” 

 

Ou seja, além dos empresários passarem a ter a opção de pagar para não empregar pessoas com deficiência, esse dinheiro vai para um Programa do governo (arrecadação é o termo usado). Não consigo nem imaginar o grau de desvio de propósito que esses recursos possam vir a ter. Dito de outra forma, também não consigo imaginar como esses recursos serão de fato utilizados para o benefício “auxílio inclusão” mencionado na mesma nota. Estamos, possivelmente, diante de um paradoxo. Por um lado, o governo propõe um PL para que a bem sucedida política de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, através de cotas, possa se converter em arrecadação que servirá para fortalecer instituições de habilitação e reabilitação (incongruente pelo que já foi mencionado) que passarão a ter a função de avaliar nível de gravidade da deficiência? Não parece um desvio da estrada para uma rua sem saída?

 

  1. “Estas são, Senhor Presidente, as razões que justificam o encaminhamento deste Projeto de Lei ao Congresso Nacional, que ora submetemos à elevada apreciação de Vossa Excelência.”  

 

Esse foi o texto encaminhado pelo governo em 11 de novembro de 2019, protocolado com o No. 21466FE7 em 28 de novembro último. A senadora Mara Gabrilli expressou a indignação encaminhada coletivamente por senadores, deputados da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência movimentos sociais e conseguiu retirar o caráter de “urgência constitucional”, solicitando ainda que o Projeto de Lei seja debatido democraticamente. Como na imagem daquele homem na Praça Celestial de Pequim na China em 1989, o movimento social que luta pelos direitos das pessoas com deficiência parou uma fila de tanques de guerra.

 

Quando a Câmara de Deputados aprecia um projeto de lei, nossos deputados deveriam se colocar no lugar da população já que são seus representantes. Portanto, a leitura desse PL deve procurar os traços éticos e os valores que refletem a sociedade que somos ou gostaríamos de ser. Desde a aprovação da Convenção Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência em 2008 e depois com a Lei Brasileira de Inclusão, terminamos os contornos e traços há muito tempo riscados que nos permitem – como sociedade – afirmar que valorizamos a diversidade, que gostaríamos de incluir socialmente todo tipo de cidadão e que queremos nos abrir e aprender sobre a possibilidade de conviver e trabalhar com pessoas que têm comprometimentos motores, sensoriais ou cognitivos. E o Instituto JNG decidiu ir além e deu os primeiros passos para abrir o caminho para que todas as pessoas com deficiência tenham, um dia, a opção de morarem sozinhos. A luta vem de longe, é árdua e demorada porque apesar de serem milhões de pessoas, estavam e muitas ainda parecem estar invisíveis. Antes ficavam escondidos em casa ou, pior, em instituições. Agora suas vozes ecoam e não há como parar.

O “Nada sobre nós, sem nós” é o lema da Convenção Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de 2008, que abriu uma fresta que rapidamente arrombou a porta com milhões de pessoas que apareceram para mostrar que podem ser o que quiserem, só precisam de oportunidades. Não dá para parar essa onda, milhões de pessoas com os mais variados tipos de deficiência já estão até surfando nessa onda e nos fazendo sentir orgulho como sociedade. A opção de colocar o foco no modelo social da deficiência, que retira barreiras ou adapta os recursos de forma a tornar o meio menos hostil para a pessoa, está comprovadamente funcionando melhor do que o enfoque biomédico centralizado na doença e reabilitação. A área de Saúde é necessária e constitui um pilar para toda a sociedade, mas não é exclusivo e nem suficiente.

O PL 6159-19 está fundamentado sobre premissas ultrapassadas.

 

O PL 6159-19 nos fará dar marcha à ré como sociedade simplesmente porque um grupo de empresas tem dificuldade para implantar na íntegra a “Lei de Cotas”. Vamos aprimorar, debater e buscar o progresso e a evolução sem nos perder de vista como sociedade. Não vale aprovar lei que exclua e que pretenda calar vozes que já ecoam sem possibilidade de controle.

#NãoAoPL6159

 

Flavia Poppe,

Presidente Instituto JNG.

Fonte: Instituto JNG

 

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