#PraTodosVerem: A imagem é um retângulo na cor vermelha, sob ela está a representação de um zumbi na cor preta, e atrás dele está uma lua amarela. Foto: Getty imagens/ Divulgação.

Faz tempo, mas havia, e tenho certeza que ele deixou marcas e levou muitas consigo. Seus passos claudicantes marcavam as irregularidades do caminho, os olhares estranhos, compadecidos e até admirados faziam dele uma celebridade local.

Ele realmente era incrível. Mesmo mancando fazia coisas que os que não mancavam faziam, muitos enchiam os pulmões para dizer – ele é um exemplo de superação – outros completavam – é um herói – e usavam ele para contrapor seus filhos lindos e perfeitos – viu mesmo ele sendo “assim” faz coisas que você não, mire-se nele, faça como ele, seja como ele (não manco, obviamente) -.

E assim o manco vivia, o tempo passava, e nada mudava. Claudicar por ruas irregulares, por calçadas ruins, por escadarias sem fim. Mas nem tudo era perfeito, pois mesmo sendo um exemplo, herói, ele caia, se machucava, sangrava, mas não desistia.

Seu corpo era marcado pelas quedas, arranhões, roxos, cortes. As cicatrizes eram tatuagens do dia a dia. Nas cabeças alheias tudo aquilo eram provas que ele vencia na vida, que ele era mais forte que as adversidades.

O manco da minha rua sobrevivia porque aprendeu a driblar as adversidades. Aprendeu a driblar as calçadas, os buracos da rua, as escadas sem corrimão, os ônibus inacessíveis, os semáforos rápidos demais para alguém com passadas irregulares.

Mas o manco da minha rua no seu íntimo não era um herói, nem queria ser exemplo de superação, nem mesmo uma celebridade local. Ele na verdade estava cansado disso, cansado dos olhares, das frases, e principalmente, da falta de atitude das pessoas que pareciam anestesiadas diante dele.

Preferiam vê-lo como alguém que venceu na vida (mesmo sem ter vencido) nada, do que tomar uma atitude positiva, ou mesmo transformar a realidade em volta.

O manco da minha rua era um herói sem capa, e principalmente, sem poderes. E as pessoas perceberam isso quando ele foi atravessar a rua, mas o tempo do sinal não foi suficiente, e ele foi atropelado por um caminhão apressado.

O manco da minha rua parou de mancar, parou de ser exemplo, parou de ser herói. Parou de viver.

E no fim ele só era um “herói” por ter que conviver com a inércia das pessoas de construir calçadas acessíveis, colocar corrimão nas escadas (ou simplesmente pensar construções sem escadas), de oferecem-lhe oportunidades dignas, de tratarem com um ser humano, de o respeitarem como pessoa com deficiência.

O manco da minha rua não foi morto pelo caminhão, mas pela omissão de todos que apenas o enxergavam como exemplo, herói ou algo do tipo. O manco da minha rua foi morto pela ignorância.

Após a sua morte ele parou de ser herói, exemplo, virou nome de rua, até proposta de estátua na praça. E a quem diga que já teve milagres concedidos por ele. Deixou de ser herói para virar santo.

E a rua, os comércios e as pessoas continuam sem pensar em acessibilidade.

Nota:

A expressão manco* é uma forma antiga e pejorativa usada para se referir as pessoas com deficiência e que graças ao avanço social que temos foi abolida. Ela foi usada nesse texto como forma de provocação e para que haja uma reflexão sobre a necessidade de se investir em acessibilidade.