Crédito: Arquivo pessoal
 
“Quando perdi os movimentos, primeiro me disseram que eu não iria sentar. Depois, que minha vida seria curta”. Com 70 anos completados em abril, José Carlos Morais é um exemplo de resistência e a autobiografia que acabou de lançar é uma prova disso. “Roda vida, memórias de um cadeirante” expõe com sinceridade desconcertante toda a trajetória de um jovem médico que, aos 25 anos, ficou paraplégico depois de um tiro durante um assalto em Ipanema, no Rio de Janeiro. Pergunto a ele como, olhando em retrospectiva, explica sua resiliência: “tem gente que aceita, se conforma e acha natural perder os movimentos e viver uma vida pela metade. Para mim, o importante foi a porrada, ter 25 anos e não sentir o corpo. Passei seis meses chorando e dali tirei a força para sair do buraco onde me encontrava”.
 
São 45 anos numa cadeira de rodas. Foram 20 dias de CTI, dez meses de hospitalização. O tiro foi disparado em 3 de dezembro de 1972. Ironicamente, 3 de dezembro também é o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência. No próximo sábado, dia 2, José Carlos fará uma tarde de autógrafos na Arena 1 do Centro Olímpico, no Rio. Ao longo dessa jornada, trocou a residência em clínica geral pela anatomia patológica. Fez mestrado e doutorado, tornou-se professor titular do Departamento de Patologia da UFRJ e, durante 40 anos de magistério, 7 mil alunos receberam suas lições – de vida, inclusive. “Passei os últimos quatro anos fazendo uma espécie de dessensibilização com a medicina, diminuindo a carga horária, me programando para não sentir um vazio quando a atividade cessasse de vez”, ele conta, enquanto espera o fim do processo de aposentadoria na universidade.
 
No esporte, encontrou força e motivação: primeiro com o basquete, depois com o tênis. Disputou três Paralimpíadas, nove Mundiais e foi o primeiro do ranking brasileiro de tênis seis vezes consecutivas. Só parou de competir em 2009. Coordena o projeto Cadeiras na Quadra, que atende a 12 crianças e jovens que participam de seis torneios por ano, mas gostaria de chegar a 30 beneficiados e criar mais unidades – o centro funciona perto de sua casa, em Itacoatiara, na região metropolitana de Niterói. O livro trata de moradia adaptada a sexo. No começo, José Carlos diz, nem se pensa nisso. Depois, ensina, com a aceitação do próprio corpo você estará pronto para que outras pessoas o aceitem. “Levei um tempo para perceber que outras partes do meu corpo também eram zonas erógenas. E que eu poderia dar enorme prazer às mulheres, incluindo as preliminares a que os homens normalmente não dão atenção”, escreve. Quase como um apêndice, há bem-humoradas “Chumbadicas”, para os chumbados, termo que os cadeirantes empregavam entre si até a década de 1990: como escolher a cadeira de roda, cuidados antes de viajar, o risco das escaras. “Perdi muitos amigos cadeirantes que não se trataram, que não tinham acesso à informação”, lembra com pesar, para enfatizar um de seus mantras: reabilitação não é voltar a andar, e sim reconquistar a independência.
 
Casado e pai de dois filhos, afirma que a acessibilidade e o preconceito melhoraram, mas chama atenção para a infantilização com que é tratado quem tem alguma deficiência. “Já saí para jantar com minha mulher e o garçom perguntava a ela o que eu iria comer”, exemplifica. Quer que o livro se torne ponto de partida para um novo campo de atuação: fazer palestras sobre sua trajetória. José Carlos confessa que não gosta muito da palavra superação: “superar passa a ideia de resolver um problema, mas eu não tenho um problema, tenho uma situação e meu propósito sempre foi me adaptar a ela”. Aos 70, ele não pretende parar.
 
Fonte: g1.globo.com